segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O apolíneo


Nietzsche, na tentativa de remontar as origens da tragédia, debruça-se sobre os impulsos artísticos da natureza que se evidenciavam na alma dos gregos. E por isso vê a necessidade de explicitar o contexto cultural que levou os gregos a desenvolverem o impulso apolíneo e o dionisíaco, falando, então, de uma sabedoria popular que seria a chave para a compreensão do apolíneo: A sabedoria de um demônio chamado Sileno. Este, quando instado a responder qual era a melhor coisa para o homem, respondeu: “não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” (NIETZSCHE, 2007, p. 33). Diante de tamanho pessimismo o grego sentiu o horror da vida, sua efemeridade e vaidade, então criou para si todo o Olimpo com seus deuses para que a vida que era impossível ao homem pudesse ser legitimada pelos deuses, para que os gregos pudessem sentir a vida elevada a máxima potência, revendo-se através de um “espelho transfigurador” (IDEM, p. 34) numa esfera superior e, deste modo, sentirem-se glorificados. Assim, toda teogonia deriva do impulso apolíneo da beleza que garante à vida a superação dos sofrimentos através do tão belo reflexo dos deuses que agora se revelam.
Destarte podemos entrever, pelo que já foi dito, algumas características do deus Apolo. Pois ele é a divindade que reina sobre a bela aparência, que tem o poder de conformar ou de configurar alguma coisa na medida certa, com a simetria que convém aquilo que é belo. É a divindade da luz e o deus divinatório que está no oráculo de Delfos, o qual, como divindade ética diz ao homem: “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em demasia” (IDEM, p. 37), ou seja, conhece tuas limitações pois tu és somente um homem, saibas onde tu podes chegar, não afrontes os deuses, vive moderada e prudentemente. A medida, o limite, o contorno, o indivíduo, o controle de si, são aspectos abarcados pelo apolíneo, pois Apolo é o deus da forma, da figura, que perpassa a arte e a alma grega. Então separa o que é uno, o que é híbrido e dá contornos (princípio de individuação), que multiplica e singulariza o Uno essencial e, assim, cobre-nos com o “véu de Maia ” (IDEM, p. 28).




Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A conta

Às sete horas da manhã acordou com a lembrança vaga do sonho que tivera naquela noite. Esforçava-se para encontrar no simbolismo do sonho um “significado maior”. Sempre falava assim, com o lábio ainda molhado de cerveja, quando se dirigia a um de seus poucos amigos mais chegados e conversavam sobre as coisas. Sempre bebia três garrafas de cerveja, sempre no final do expediente, sempre na quinta-feira.
– Não sei... Mas na quinta me sinto melhor. Dizia.
Mas a verdade era que sua mulher tinha reuniões semanais na quinta-feira e só chegava após ele já estar na cama, fato que evitava conflitos desgastantes por ele ter bebido. Ela sabia, todos sabiam.
Pensava no dia que teria pela frente e esquecia-se do sonho. Ouvia o barulho do café sendo posto na mesa e, por um momento, estranhava o mundo como se a ruptura com o sonho tivesse deixado seqüelas na sua alma.
– Amor, amor... Sua mulher o chamou pensando que ele ainda dormia.
Estremeceu.
− A conta, não esquece hein! Continuou.
Ele levantou, tomou seu café rapidamente e saiu de casa, acendendo o cigarro que escondia cuidadosamente na caixa do tênis Nike de caminhada que comprara, mas que nunca tinha usado. Sabia que Nike era uma palavra grega que significava vitória e sentiu-se bem ao comentar com a vendedora na ocasião da compra:
− Nike... Sabe, é uma palavra grega. Significa vitória sabia?
A vendedora obviamente interessada rasgou-se em elogios. No fundo ele sabia também que isso fazia parte do ofício de vendedor, mas mesmo assim se sentiu bem. Na volta do trabalho devia pagar a conta de telefone, não podia esquecer. Sentou no ônibus. A sua direita sentava uma mulher magra que ele nunca viu o rosto, mas sentia que era a mesma mulher de tantas outras idas. Havia um rapaz de camisa listrada, sempre de

camisa listrada. Listras grossas alternadas com finas. Azul, preto e branco, verde, preto e branco, amarelo preto e branco...
– Deve ter uma coleção de camisas pólo listradas, ou será uma farda de trabalho? Pensou.
Um casal que ora discutia ora ria, aquelas conversas ao telefone que se escutava sem querer e aqueles cabelos ainda pastosos da noite passada. Sempre as mesmas figuras! Desceu do ônibus e sentiu a firmeza do solo no pé e o vento no rosto ainda inchado de sono. Da paisagem urbana extraía belezas que o acompanhavam no seu caminho. Não suportava que a vida fosse tão óbvia,
− Não pode ser só isso! Dizia quase se fazendo escutar por alguém que passava por ele na hora.
Sentou-se em sua cadeira. Automatismo sem poesia, automatismo sem poesia, automatismo sem poesia, automatismo sem poesia. Respirou fundo e saiu. Se não fosse a fumaça só teria vazio no peito. Mais um cigarro. Entre olhadelas para as mulheres que passavam seguia seu caminho. O fato de ter escolhido uma mulher para si o atormentava,
− Poderia ter conseguido uma mulher melhor? Dizia para si mesmo.
Mas a resposta trazia certa consolação, pois era óbvio que poderia.
− Aquela namoradinha que tive poderia ter mudado tudo...
Sim, sentia-se poderoso e fraco ao mesmo tempo. As escolhas que fazia traziam conseqüências que não podiam ser controladas e, às vezes, no momento da escolha não estava pronto. Procurou um trocado no bolso para o mendigo aleijado que lhe estendera a mão. Não achou. Pediu desculpas e andou. Tinha algo a fazer: Pagar a conta de telefone! Esta se encontrava, dobrada várias vezes, dentro de sua carteira. Tirou-a da carteira e a segurou na mão suada. Lembrou das várias ligações que sua sogra fizera para suas amigas beatas e se irritou. Amassou o papel na mão. Seguiu, confiante e certo, em busca de seu objetivo: pagar a conta de telefone! Não havia mais nada a fazer.

− Boa noite! Quero pagar a conta de telefone. Disse ele depois de imaginar umas quatro diferentes formas de dizer isso.
Abriu o papel da conta, estava suado, desbotado. Se o papel tivesse sentimentos diria estar angustiado. Pagou. Sorriu para a moça que o atendeu e saiu. De repente pára na porta do prédio, volta-se para trás e pergunta:
− Quando a gente sonha com florestas é bom?
− Florestas? Pergunta a moça estranhando a pergunta.
− Sim, florestas belas, verdes...
− Não sei, respondeu a moça.
Quando estava saindo, a moça diz:
− Poderia ser tudo diferente!
Será que tinha sido com ele? Melhor não voltar e perguntar. Ainda que não tivesse sido com ele, aquela frase fazia sentido para ele e isso era única coisa que importava. Pensou mesmo na possibilidade de ter sido um anjo que falara.
− Ou talvez um demônio... Sussurrou.

Progretaire

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O problema da simultaneidade dos prazeres e dores no Filebo de Platão



Só existe prazer ou dor se há também um ser que o sinta? Acredito que Platão responderia que não. Pois, embora o prazer e a dor necessitem da sensação para serem percebidos no nível da dóxa, no nível inteligível não há necessidade de sentir dor ou prazer para dar-lhes existência. A idéia de prazer é eterna e prescinde da sensação de prazer, o mesmo ocorrendo com a idéia de dor.

De fato não podemos sentir dor e prazer simultaneamente, visto que, embora aja no corpo muitos canais de receptividade das afecções, só há uma alma que transforma essas afecções em prazeres ou dores. Portanto já sabemos que não se pode sentir dor e prazer ao mesmo tempo e certamente Platão também o sabia, mas então o que ele quer dizer quando Sócrates afirma que existem misturas de partes iguais e desiguais de dores e prazeres? (46d) Entendo que Platão tinha em mente que no momento em que existem afecções, fontes de prazeres e dores, atuando juntamente no corpo, a afecção que prevalecesse “na balança” seria transformada pela alma, seja ela dor ou prazer. Porém isso não impede de maneira alguma que a afecção suplantada permaneça atuando no corpo sem ser sentida como prazer ou dor. E desde que aja a atuação da fonte geradora de dor ou prazer, embora não a sintamos, compreendemos inteligivelmente que há dor ou prazer em nosso corpo. Pois, nós todos sabemos, que a natureza é regida pela lei da causa e do efeito e quem dissesse que existe a atuação de uma causa sem um efeito, ou seja, se dissesse que o calor do sol não esquenta uma pedra exposta ao sol do meio-dia ou que se um ovo cair da minha mão em direção ao chão sem nenhuma interferência direta ele não quebrará, nós todos diríamos que essa pessoa não diz algo razoável. Do mesmo modo, uma afecção que gera especificamente uma dor, ainda que não seja captada por nossos sentidos, que por sinal são falhos, traz como conseqüência natural, senão a sensação de dor, a idéia inelutável de dor.

Por conseguinte, se há duas afecções, uma de dor e outra de prazer, e o prazer é mais forte, ele é transformado em sentimento pela alma e o homem que o sente não dá conta, pela percepção dos sentidos, que há dor, mas esse mesmo homem pode, através do intelecto, inferir a existência da idéia de dor (não o sentimento de dor) em seu corpo. Imaginemos um mendigo com hanseníase que tem seus cotovelos roídos por ratos durante o seu sono, a doença irá impedi-lo de sentir a dor, que nada mais é que um mecanismo de defesa do corpo, mas se ao despertar ele ver que existem ratos o roendo, certamente ele irá espantá-los, pois embora não sinta a dor, ele tem a idéia de dor.

Mas alguém dirá com razão: e quando há afecções de prazeres e dores na mesma medida, qual delas será sentida? Suponho que nesse caso nem uma, nem outra, visto que elas se anulariam por serem forças eqüipolentes e só as compreenderíamos no nível das idéias, e então, poderíamos falar de um terceiro estado da alma que é totalmente diverso de prazer e de dor.

Portanto não é estranho a Platão pensar que existem prazeres misturados a dores simultaneamente, mas somente enquanto idéia e não no tocante a sensibilidade. Pois só somos capazes, no nível da dóxa e da sensibilidade corruptível, de sentirmos o prazer ou a dor decorrente de uma afecção, restando para a outra a apreensão via inteligível.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A physiología como condição para a serenidade da alma na obra de Epicuro.



A physiología ou o estudo da natureza é, para Epicuro, a fonte de uma vida serena (DL, X, 37). Através do estudo da phýsis são reunidas as condições necessárias para tranqüilizar a alma frente aos temores, superstições e expectativas gerados, principalmente, pelos mitos e pela ignorância dos fatos que ocorrem no momento da morte e dos demais fenômenos naturais. Pois tal investigação elimina a fonte da perturbação, dando a alma uma tranqüilidade perfeita, colocando-a no estado que Epicuro chama de ataraxía (DL, X, 85).


Porém, alguém poderia considerar que as conclusões das investigações phisiológicas dos tempos de Epicuro poderiam ser tão falhas, da perspectiva da ciência atual, quanto as da compreensão mítica do mundo, de modo que a certeza dos epicuristas poderia ser infundada e, portanto, poderia trazer as mesmas perturbações a alma que os mitos. Entretanto o método investigativo de Epicuro consistia no levantamento de hipóteses acerca dos fenômenos da natureza, fazendo analogias entre o que é perceptível e o que não é, de modo que mesmo que uma hipótese fosse falsa ela não seria incoerente com o conjunto dos fenômenos naturais (DL, X, 95), ao contrário do que ocorre na explicação mítica do mundo que não parte da própria natureza para explicá-la, mas das narrativas míticas. Estas são rejeitadas, não pelo fato de ter uma concepção errada da natureza, mas por tentar explicar a natureza de uma perspectiva errônea. Posto que a investigação da phýsis tem por fim a serenidade da alma, não é necessário saber positivamente como se dão os fenômenos, mas apenas negativamente, ou seja, que eles não são produzidos através de intervenções divinas (CONCHE, 1977, p. 38). Assim, todo fenômeno é, para Epicuro, um fenômeno natural.

A physiología tem, portanto, o único fim de tranqüilizar a alma, finalidade esta que se expressa claramente na máxima XI, em que Epicuro nos diz:
Se não nos perturbássemos com nossas dúvidas a respeito dos fenômenos celestes, e se não receássemos que a morte significasse alguma coisa para nós, e também não nos perturbássemos com nossa incapacidade de discernir os limites dos sofrimentos e desejos, não teríamos necessidade da ciência natural.
(DL, X, XI)

Nesse passo vemos que a necessidade da physiología está no fato de que o homem carrega consigo sofrimentos que não precisa levar, pois poderiam ser suprimidos pelo estudo da phýsis. Observamos aqui três características inerentes ao homem de qualquer tempo e lugar, pois, primeiramente, todo homem, ainda que seja versado nos saberes físicos, desconhece muitos fenômenos da natureza que o cerca, gerando dúvidas que com freqüência são dirimidas pelas explicações míticas ou religiosas, as quais por um momento podem tranqüilizar a alma do homem, mas que invariavelmente trazem consigo temores e perturbações maiores que os dantes superados; e no pano de fundo das ações dos homens ainda permanece o medo constante do que há para além da vida, e é aqui que reina todas as espécies de fabulações que trazem consigo temores que vez ou outra afligem e perturbam as nossas crédulas almas; e, por último, o fato de que não conhecemos nossa própria natureza o suficiente para sabermos os limites dos sofrimentos e dos desejos.

Entretanto, a investigação da natureza pode sanar tais perturbações anímicas na medida em que o homem se volte para um modo de vida que privilegie o saber oriundo da phýsis. Abandonar os mitos é o primeiro passo. Pois como afirma J. P. Vernant: “para o pensamento mítico, a experiência cotidiana se esclarecia e adquiria sentido em relação aos atos exemplares praticados pelos deuses ‘na origem’” (VERNANT, 2002, p. 110). E assim, os mitos em sua tentativa de compreender a natureza, ao invés de sanar os sofrimentos e temores dos homens diante daquilo que não conhecem, acabaram suscitando mais temores e perturbações ainda. Quando as narrativas míticas criaram os deuses para explicar fatos naturais com o fim de apaziguar a alma amedrontada do homem, ao mesmo tempo trouxeram os possíveis castigos divinos que novamente colocaram os homens em estado de perturbação, porém essas concepções concernentes aos deuses não estão de acordo com a noção que a natureza traçou (hypegráfe) na alma do homem (DL, X, 123). Por conseguinte era necessário redirecionar o homem para a natureza, que não era outra senão a sua própria natureza, evidenciar a posição de preponderância dela em relação aos artifícios do homem, à religião, à política e a todas as outras convenções sociais. Estabelecer a phýsis como parâmetro do agir do homem, pois era dela que o sábio deveria tirar a sua sabedoria, aquilo que deve escolher e aquilo que deve rejeitar deve ser indicado pelo conhecimento de sua própria phýsis. Assim o homem diante daquilo que não conhece não mais recorreria ao mito, mas passaria a investigar a natureza e tiraria dela uma hipótese coerente e racional que faria com que ele recobrasse o seu estado de placidez e tranqüilidade.

Libertando-se da interferência das narrativas míticas o homem encontraria explicações plausíveis acerca dos fenômenos naturais, inclusive a respeito da morte. Epicuro na carta a Meneceu diz que a morte “nada é para nós” (DL, X, 124), tendo em vista que a alma (psyché), no momento da morte, dissolver-se-ia em seus átomos componentes, efetivando assim, a lei de geração e corrupção que vigora em todo o universo. Deste modo a morte não deveria ser motivo de temor para o homem, visto que, nela não há sensibilidade e, portanto não há dor.
Epicuro destaca também que a physiología desempenha um papel primordial na nossa capacidade de discernir “os limites” dos desejos e sofrimentos, pois, conhecidos os limites do sofrimento, ou seja, sabendo, por exemplo, que uma dor contínua não dura muito na carne (DL, X, IV), poderemos desfrutar ainda dos prazeres que vez ou outra sobressaem à dor, por outro lado, se não conhecemos tais limites, a perturbação causada por essa ignorância nos levará a suplantar esses possíveis prazeres com a expectativa de sofrer ininterruptamente. Um desses possíveis prazeres é aquele gerado pela lembrança de bons momentos (cf. DL, X, 22). Sabendo que o final do sofrimento é o início do prazer, o sábio poderá, também, escolher uma dor que trará, em breve, um prazer maior (DL, X, 129), de modo que a physiología se relaciona com o modo como agimos em nossa vida, que deve ser uma vida segundo a natureza, ou seja, um modo de viver que se paute nos parâmetros encontrados através da investigação da phýsis. Por sua vez, o conhecimento dos limites dos desejos é de suma importância para a vida do sábio, pois o desejo ilimitado ou imoderado causará, em vez dos prazeres esperados, sofrimento e dor. É o conhecimento de si, de sua phýsis que o levará a fazer as escolhas certas, que trazem prazer e não dor.

Portanto através da physiología o sábio garante a sua imperturbabilidade (ataraxía), um estado de alma para o qual Epicuro se utiliza de uma imagem poética para descrevê-lo: galenismós, palavra grega derivada de galene que significa a “calma do mar” (ISIDRO PEREIRA, 1998, p. 110) indicando que a ataraxía é um estado de alma tal qual o mar quando se encontra sereno.


REFERÊNCIAS
Vernant, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel. 2002.
Conche, M. 1977. Epicure: Lettres et Maximes. Paris: éd. De Mégare.
Laêrtios, D. 1988. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: UNB.
Isidro Pereira, S.J. Dicionário Grego – Português e Português – Grego, 8ª edição, Livraria A.I. Braga, 1998.

domingo, 11 de outubro de 2009

O dionisíaco


Dionísio: um deus bárbaro que onde penetra aniquila tudo o que é apolíneo. Para Nietzsche ele é o oposto de Apolo, pois enquanto este é todo medida e limite o dionisíaco é destruição e libertação “por meio de um sentimento místico de unidade” (NIETZSCHE, 2007, p. 29). Dionísio é o protagonista do rompimento do principium individuationis através de um êxtase que arrebata o iniciado no ritual dionisíaco, propiciando a perda do autocontrole, do limite, afundando-o na completa embriaguez do auto-esquecimento. Assim, o homem, no estado de êxtase e esquecimento de si, volta ao “Uno primordial” (IDEM, p. 28) tendo suas cadeias quebradas, livre de todo e qualquer limite e, deste modo, percebe que a multiplicidade do mundo é apenas aparente e que é obra de Apolo que nos cobriu com o véu da ilusão. Na verdade não há limite nem forma nesse mundo dionisíaco que não é outro senão o nosso mundo. Pois como diriam os Pré-socráticos: “tudo é Um”.
Tendo por característica a desmedida sua arte não tem figura e, portanto, preside sobre a música que em Apolo é ritmo e medida, mas que em Dionísio é a “violência do som” e uma “torrente unitária” (IDEM, p. 31).
Dionísio não é um deus originariamente grego, pois seus rituais já aconteciam no seio de povos bárbaros, de modo que quando ele penetrou nessa cultura grega e apolínea e, portanto, moderada, simétrica e comedida, que mantinha latente em si esse poderoso impulso dionisíaco “artificialmente represado” (IDEM, p. 38), tal penetração veio em forma de embriaguez desconcertante, num gozo fremente que rompeu todo e qualquer limite do “eu” e da forma aparente. E Trouxe consigo o êxtase ilimitado que nos dirige ao Uno primordial num grito que se ouve e que canta todo o universo, em um estado em que já não sou mais eu, nem existe “eu”, nem tu, mas que rasgado o véu de “Maia” percebemos, não com a razão lógica, mas com a imaginação intuitiva que tudo é Um.

Referência:

Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Compainha das letras, 2007.







domingo, 20 de setembro de 2009

A amizade epicurista


O sábio busca a amizade (philía), pois ele visa à felicidade, a qual não pode ser alcançada na privação do convívio com amigos e da mútua utilidade (ophéleia) resultante de uma relação amigável. Porém não é com indivíduos participantes da “multidão insensata” que o sábio se ligará afetivamente, mas com seus iguais, que partilham de um mesmo pensamento que se funda no estudo da natureza (phýsis). Pois a philía epicurista consiste em partilhar a vida, sentimentos, e também, uma mesma filosofia.
Α amizade como fundadora das agregações humanas é tão natural quanto à força que une os átomos na composição dos corpos agregados, por isso quando o sábio estuda a natureza ele entende que como certos átomos repelem uns aos outros, alguns homens se distanciam por falta de afinidade e esta se mede pela compatibilidade de pensamento.
É na comunidade de pensamento que se proporciona a utilidade mútua (ophéleia), e, portanto, poderia um sábio ser amigo de um néscio? É evidente que não. Embora toda amizade em si mesma seja desejável, é na utilidade que ela se funda (SV 23), portanto, é necessário que a relação amigável seja simétrica, de modo a que alguém não seja de tal modo sobrepujado pelo companheiro que não possa oferecer-lhe nada que este já não desfrute. É preciso ressaltar que a amizade não é a simples e fria utilização de alguém como instrumento para realizar seus objetivos, pois não é amigo aquele que faz da amizade um comércio e que espera sempre algo em troca dos benefícios que ele proporciona ao outro, nem tampouco é amigo o que separa a amizade da utilidade, tornando-se alguém com o qual não se possa contar no futuro (SV 39), mas é uma necessidade natural e meio para alcançar a felicidade de toda a comunidade. Pois tendo em suas bases a ophéleia ela se sustenta e permanece pelo prazer fruído na vida em comum, onde uma simples conversa entre membros de uma comunidade pode ser tão útil aos participantes dela quanto o mais eficaz remédio contra as dores do corpo, tal como Epicuro relata em sua carta a Idomeneu .
A philía deve ser forte o bastante para nos pormos em perigo por nossos amigos (SV 28), ponto em que Epicuro nos adverte a não aprovar aquele que cria rapidamente laços de amizade, nem aquele que demora em fazê-los, tendo em vista que o primeiro não tem raízes suficientes para se expor ao perigo por um amigo e o segundo pode deixar de ajudar por não se achar ainda na condição de amigo quando vier o momento da dor. Mas o maior auxílio que um amigo pode nos prestar é a confiança de que ele estará pronto a nos ajudar quando dele precisarmos. Assim, a philía claramente contribui para um estado de bem-estar e tranqüilidade sem os quais não poderíamos alcançar a felicidade.
A comunidade epicurista surge com uma alternativa de paradigma para a sociedade decadente de Atenas, onde os habitantes não tinham mais cidadania e poder político: A amizade como fundadora de comunidades em uma organização molecular em que homens se aproximariam de acordo com suas idiossincrasias.

domingo, 13 de setembro de 2009

Signos linguísticos na obra: Curso de linguística geral de F. Saussure


INTRODUÇÃO

Ferdinand de Saussure na obra Curso de Lingüística geral, que surgiu da reunião das anotações das aulas de Saussure pelos seus alunos, prima pelo esclarecimento do objeto específico da lingüística, o qual, até então, não houvera sido indicado com clareza pelos lingüistas, pois estes se voltavam predominantemente para os fatos externos à língua. É neste ponto que Saussure supera os outros pesquisadores, a saber, em ter dado à lingüística a independência frente às ciências antes indispensáveis a ela.
O pensamento do mestre genebrino veio a desencadear o estudo de uma nova ciência que se mostrava emergente: a semiologia ou semiótica, da qual a antropologia estrutural de Lévi-Strauss é uma parte e a lingüística é outra (só para citar as mais conhecidas). E da linguística Saussure definiu, então, que seu objeto específico de estudo era a língua (la langue) e isso exclui até mesmo a fala (la parole), embora nosso autor traga à tona uma bifurcação no caminho dos lingüistas afirmando que se deve escolher entre dois caminhos impossíveis de trilhar ao mesmo tempo: a lingüística da fala e a lingüística cujo objeto é propriamente a língua. Quando Ferdinand de Saussure define a língua como objeto de estudo da lingüística ele elimina desta ciência todos os elementos externos à língua, como por exemplo, certos fatos históricos de uma língua ou de uma raça. Pois se considerarmos a língua em seu sistema e em suas regras estaremos compartilhando do pensamento de Saussure, mas, se ao contrário, pensarmos que o mais importante são os elementos que não configuram o sistema da língua como os costumes de uma nação que podem ter tido relevância no que tange aos fatos lingüísticos, estaremos indo na contramão da teoria de F. Saussure.
Mas o que é a língua? É em volta dessa questão que pretendo, primeiramente, direcionar minha atenção neste trabalho, pois respondendo a essa pergunta adentraremos no campo que proponho abordar mais detidamente, ou seja, na análise dos signos lingüísticos. E enquanto discorremos acerca dos signos é inevitável que tenhamos de fazer certos esclarecimentos no que concerne às diferenças existentes entre a Linguagem, a Língua e a Fala. No presente trabalho, utilizarei como fonte somente a obra Curso de lingüística geral, não recorrendo a comentadores, exceto aos comentários feitos pelo professor em sala de aula.


LÍNGUA (La langue)

Esclarecido o objeto de estudo da lingüística, é necessário, então, definir o que nosso autor entende como “língua”, e nesta definição é preciso também considerar a contraposição com a linguagem, uma vez que o fato de não destacar as diferenças entre as duas pode ser motivo de confusão, levando o leitor a tomar uma palavra pela outra.
Para Saussure a língua é uma parte, embora essencial, da linguagem, tendo em vista que, a língua é quem possibilita o exercício da linguagem. Enquanto a linguagem é algo natural do homem, pois o homem é por natureza um ser gregário, a língua é uma convenção, da qual os homens se utilizam no contato com os outros. Deste ponto podemos observar que a língua é um produto social e só na coletividade que ela existe por completo, ela é quem unifica a multiplicidade da linguagem em um sistema convencionado. A língua constitui-se, pois, num sistema de signos que correspondem a idéias distintas, sistema do qual poderíamos dizer que é a linguagem menos a fala e que permite alguém compreender e ser compreendido.
Uma vez que Saussure põe em separado o estudo da fala (La parole), inevitavelmente temos que esclarecer o motivo pelo qual o autor, na definição do objeto específico da lingüística, separa e como afirma que é possível separar o estudo da língua e da fala. Vemos na presente obra que comento que seu autor afirma que, embora a língua e a fala sejam interdependentes entre si, pois todos nós, por um lado, aprendemos nossa língua materna ouvindo os outros e, por outro, sabendo que em qualquer situação seria inevitável que o homem tivesse falado primeiro para associar uma imagem verbal a uma idéia, a língua e a fala são coisas distintas. Isso pode ser observado se levarmos em consideração algumas distinções entre a língua e a fala. Pois um homem ainda que seja desprovido de sua capacidade de falar pode conservar a língua contanto que compreenda os outros, mas o contrário é impossível, além de que, os órgãos vocais são exteriores à língua. A língua existe intramentalmente na coletividade, depositada em cada cérebro passivamente e independente da escolha do indivíduo, enquanto que a fala é individual e dependente da vontade do falante. Mas, embora a língua seja psíquica não é uma mera abstração, ela existe concretamente em nossos cérebros e prova disso é que podemos fixar os signos lingüísticos em imagens convencionais, ou seja, podemos escrever esses signos. Percebe-se que a língua é superior a fala na medida em que aquela é essencial e esta é apenas um acessório da língua. A língua é, pois, uma potência aristotélica que se atualiza a cada momento na fala.
E como tinha proposto anteriormente, passemos ao estudo dos signos dos quais esses esclarecimentos eram primordiais e em que já vemos a premência de explicar os signos linguísticos, uma vez que eles fizeram parte dos esclarecimentos acima expostos.


SIGNOS LINGUÍSTICOS

Como já vimos, a língua é um sistema de signos que correspondem a idéias distintas, porém não explicamos o que são esses signos. O que Saussure chama de signos é a união entre uma imagem acústica e um conceito, isso se evidencia se levarmos em consideração que um signo lingüístico não une uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica, dos quais:
a) A imagem acústica ou significante é a impressão psíquica do som, que se dá, por exemplo, quando falamos em silêncio conosco (esse termo do signo não pode ser confundido com o som material);

b) O conceito ou significado é a idéia que se associa a imagem acústica para formar o signo linguístico.

De modo que se investigarmos o circuito da fala, perceberemos a função desses dois termos. Pois quando alguém fala é necessário que um conceito ou significado provoque em nossa mente uma imagem acústica ou significante que seja, por sua vez, projetada pelo aparelho fonador como som material e em seguida seja recebida pelo ouvido de um interlocutor e que tal som seja convertido no cérebro deste em uma imagem acústica que corresponderá a um conceito, é assim, pois, que esses termos do signo funcionam. Estes são realidades existentes no cérebro e são tangíveis na escrita que tem a função de representar o sistema de signos linguísticos.
Outra característica que deve ser levada em consideração aqui é a arbitrariedade do signo ou o fato de que ele é imotivado, pois a idéia de mar não tem relação interna nenhuma com a seqüência de sons m-a-r, ou seja, a idéia de mar poderia ser expressa por qualquer outro signo, uma prova disso é a diferença entre as línguas, pois se em português eu expresso a idéia de menina pela seqüência de sons m-e-n-i-n-a em latim a seqüência de sons dessa mesma idéia é p-u-e-l-l-a (puella). Porém embora a língua seja arbitrária ninguém pode modificá-la, porém em contrapartida o tempo altera evidentemente a língua, de modo que nessa alteração ocorre um deslocamento entre o significante e o significado, mas a língua considerada em sua evolução é um caráter da lingüística diacrônica estabelecida por Saussure em sua obra, onde ele contrapõe a linguística estática ou sincrônica à lingüística diacrônica, porém esta não é o foco das atenções neste trabalho e sim a linguística estática. Uma observação que deve ser feita é a de que o significante ou a imagem acústica não pode ser confundido com um símbolo, pois este não é arbitrário e, portanto, não pode ser substituído por qualquer outro símbolo. De fato se imaginarmos o símbolo da justiça, ou seja, a balança é evidente que não poderíamos trocá-lo por, por exemplo, um carro. Uma vez que este último não goza de uma relação interna com a idéia de justiça, acontecendo exatamente o oposto com a balança que traz consigo significados que remetem à justiça, como a equidade, honestidade etc.
Como um último ponto a ser tratado neste trabalho a respeito dos signos, gostaria de falar acerca do valor do signo lingüístico e para isso abrirei um pequeno tópico em um parágrafo curto para falar rapidamente acerca deste ponto importante da teoria de Saussure.

VALOR DO SIGNO LINGUÍSTICO

O valor de algo, seja lá do que for, sempre é constituído em dois aspectos: na relação de semelhança entre algo e algo para termos de comparação e, contrariamente, na diferença de alguma coisa com relação a outra para ser trocada por ela. Pois uma moeda de cinco centavos, no segundo caso, pode ser trocada por uma bala, de modo que o valor da bala fica determinado pela diferença ou dessemelhança com relação à outra coisa. E para exemplificar o primeiro caso podemos dizer que o valor da moeda de cinco centavos pode ser comparado com uma moeda de mesmo valor de um outro país, por exemplo, cinco centavos de dólar, de modo que o valor da primeira determina-se em função da segunda. Do mesmo modo os signos definem seu valor através da semelhança ou dessemelhança com relação a outros signos, ou seja, os termos são determinados pelas palavras que o rodeiam, e tem sempre seu valor definido negativamente, de modo que sabemos o valor de um signo somente quando ele é relacionado aos signos que ele não é.

CONCLUSÃO

A teoria de Ferdinand de Saussure teve influências profundas na Filosofia, na Antropologia, Psicologia e óbvio na Lingüística, seus conceitos serviram de base para o desenvolvimento do Estruturalismo e da Semiótica. E o curso de lingüística geral, que conhecia só de nome, surpreendeu-me com a genialidade do pensamento de seu autor, de modo que se tornou patente para mim o lugar desta obra como um marco das ciências humanas que deve ser lido pelos alunos de qualquer curso ou por todo aquele que ama o saber e está aberto a conhecer o pensamento dos grandes homens. Neste trabalho me limitei a esclarecer alguns pontos da lingüística sincrônica, parte da obra que, sem dúvida, carrega a sua maior originalidade. Enfim remeto ao tema escolhido citando um trecho do Curso de lingüística geral: “sem o recurso dos signos, seríamos incapazes de distinguir duas idéias de modo claro e constante”.

sábado, 5 de setembro de 2009

Voltaire no texto "Sou livre?" e outros da obra O filósofo e o ignorante


Voltaire, no capítulo XIII de sua obra O filósofo e o ignorante, escreve acerbamente, como é de seu feitio, a respeito da liberdade, tomando a posição determinística, num primeiro momento, de que o acaso não existe e de que tudo está sujeito à causalidade que se evidencia na natureza. Pois como o homem, este “animalzinho”, com todas as suas limitações, se elevaria acima das leis da natureza?
Por conseguinte, a vontade humana também se submeteria às leis da causalidade, pois, no momento em que quero, quero porque alguma situação vivida me leva a desejar aquilo que quero. Entretanto Voltaire afirma que os homens têm uma porção de liberdade, qual seja: “o poder que receberam da natureza para fazerem o que querem em muitos casos”. O filósofo toma, então, a perspectiva do compatibilista, o qual não nega a lei de causalidade que rege a natureza e nossas ações, mas que também não nega que há liberdade nelas, ou seja, liberdade não é ausência de causalidade, mas sim ausência de coação, assim como diz Voltaire: “Minha liberdade consiste em andar quando quero andar desde que não sofra de gota” (XIII), pois a liberdade do homem “consiste em seu poder de agir” (LI).
No capítulo LI e nos seguintes, Voltaire discorre a cerca da ignorância dos homens e a sua própria no que concerne aos tempos antigos, a ignorância com respeito a sua própria nação, a ignorância do clero patente nas absurdidades das histórias contadas sobre os ditos santos e de seus milagres, a ignorância proveniente da intolerância e, por último, faz um apelo para que a razão não se submeta ao “monstro” do fanatismo que, ainda nos tempos do iluminismo, surgia com a intenção de cercear a liberdade de pensamento dos homens de razão.
Enfim, as leituras dos textos de Voltaire sempre são prazerosas e acompanhadas de risos espontâneos a cada pilhéria que ele deixa, brilhantemente, nas linhas de suas obras, que se não eram escritas com sangue, como queria Nietzsche, certamente eram escritas com a tinta ácida do descaramento.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Pensamentos Metafísicos


A obra de Spinoza chamada Pensamentos Metafísicos foi escrita como apêndice de uma outra obra sua chamada Princípios da filosofia cartesiana, à qual, por vezes, remete o leitor. Mas, embora seja um apêndice, é uma obra profunda em que os conceitos metafísicos são explicados e podemos entrever as principais concepções da filosofia de Spinoza. É um texto difícil de ler, pois Spinoza se utiliza da linguagem dos escolásticos, o que dificulta a compreensão de certos termos. Portanto, é necessária uma leitura atenta e sempre retroativa, visando à consulta das definições dos termos empregados por ele. No entanto, é sempre prazeroso quando, depois do esforço para a compreensão, finalmente conseguimos entender um texto.

No capítulo III da primeira parte somos levados a raciocinar acerca das afecções dos entes, ou seja, aquilo que nos afeta e faz com que percebamos a existência das coisas, de modo a esclarecer quais das afecções consideradas pelos pensadores metafísicos eram realmente afecções do ente ou não. E aqui vemos a concepção de que Deus é um ente que tem a afecção da necessidade, visto que sua existência é causada pela força de sua própria essência, e, além disso, é causa de tudo o mais. Pois as coisas criadas não existem por elas mesmas ou pela força de sua essência e precisam de uma causa que, em última análise, é Deus ou a natureza, ademais até a essência do que existe é proveniente de Deus, portanto, em um primeiro momento poderíamos dizer que as coisas têm uma existência possível, mas que uma quimera, ou seja, aquilo que tem uma natureza contraditória em si mesmo como, por exemplo, um círculo-quadrado, não poderia nem mesmo ser concebido em nossas mentes, de modo que não poderia estar entre as afecções do ente a impossibilidade.

Entretanto, mesmo a afecção da possibilidade, considerando que todas as coisas foram decretadas por Deus desde a eternidade, não deve ser tomada por uma afecção, mas como um defeito do nosso raciocínio, pois se as coisas foram determinadas pelas leis eternas de Deus, necessariamente têm de existir, ou seja, têm a afecção da necessidade, porque Deus é imutável e não altera seu decreto, cuja força inicial se estende por toda a eternidade com o mesmo poder inicial, visto que a força necessária para manter algo é a mesma utilizada em sua criação. De modo que se considero que o ente tem a afecção do possível é porque não conheço a causa das coisas, ou seja, as leis eternas da natureza ou Deus. Deste ponto podemos vislumbrar o conceito de criação na obra de Spinoza que diz que Deus não é transcendente, mas que é imanente à natureza e que na criação Deus e natureza são uma e a mesma coisa. Essas concepções de Spinoza o levaram a excomunhão da sinagoga, pois era da religião Judaica.
Porém se Deus determinou todas as coisas, onde estaria a liberdade do homem? Spinoza responde que nossas ações e vontades são todas determinadas por Deus, mas contraditoriamente afirma que de algum modo a nossa liberdade está resguardada, pois afirma que todos nós vemos clara e distintamente que muitas vezes fazemos escolhas segundo as nossas vontades, mas também que se atentarmos para a natureza divina, vemos, também clara e distintamente, que as coisas são regidas pelas leis eternas de Deus, pois Ele é soberano. É, portanto, incompreensível, diz ele neste texto a compatibilidade da liberdade com a determinação divina dos fatos.

Além desses pontos, Spinoza trabalha a questão dos modos de pensar que, por vezes, são tomados como afecções dos entes como, por exemplo, a unidade que não é uma afecção, mas um Ente de Razão, ou seja, um modo de pensar que serve para distinguir algo da pluralidade de seres; ou a questão do tempo que também não passa de um ente de razão pelo qual medimos a duração de algo por comparação a uma duração constante.

A questão da verdade também salta aos nossos olhos pela maneira como é pensada na filosofia spinoziana, pois pensa que a verdade ou a falsidade é extrínseca a determinação da linguagem, porque a linguagem é convencional, a verdade não está nas palavras, como também não está nas coisas, mas nas idéias, por exemplo, se digo que a minha caneta é de prata sendo, na verdade, de plástico, poderia não estar dizendo algo falso se estivesse em uma comunidade que denominasse o plástico de prata, portanto o que vale é a idéia verdadeira que temos de plástico e de prata, não importando os termos pelos quais os designamos. A verdade ou a falsidade não faz parte da essência das coisas, mas da essência das idéias. Também faz uma crítica às noções antropomórficas que temos da realidade, o que a religião fez com Deus é um exemplo, outro é o que consideramos bom ou mal tendo em vista apenas o homem, esse é um ponto importante da filosofia de Spinoza, e por fim é notória a ausência de uma teleologia em sua filosofia ou de um bem metafísico que ele prontamente refuta, falando em vez disso, de apenas uma tendência que os seres têm de permanecer em seu ser.

Enfim, como disse é uma obra difícil, mas que se estudarmos pacientemente descobriremos riquezas enormes nessa filosofia que veio a inspirar filósofos como Schopenhauer, Nietzsche e Hegel.

sábado, 18 de julho de 2009

O ARGUMENTO DO TERCEIRO HOMEM



O argumento do terceiro homem aparece no livro Α da Metafísica de Aristóteles. Esse argumento é uma das críticas do estagirita ao seu mestre Platão, porém Aristóteles não tem o mérito de ter formulado essa crítica, pois esta já tivera sido feita por um sofista contemporâneo de Platão chamado Polixemo e o próprio Platão faz um tipo de autocrítica no seu diálogo Parmênides acerca desse mesmo problema de sua teoria.
Esse argumento é uma crítica a teoria das idéias, pois afirma que se tomar-mos como verdadeira a existência das Formas eternas, estas se multiplicariam infinitamente em suas relações com as coisas sensíveis. Antes de esclarecer esse ponto relembraremos um pouco da teoria platônica.
A teoria das Idéias supostamente resolveria o problema da unidade e multiplicidade de uma mesma coisa, tendo em vista que, embora as coisas sensíveis fossem, ora grandes, ora pequenas, e, portanto múltiplas, as idéias eternas e unas preservariam a unidade do ser. Entretanto, pelo fato de só conhecermos algo em sua unidade ideal, por exemplo: só conhecemos os vários livros existentes devido à idéia eterna e una de livro (lembrando que Heráclito que influenciou profundamente a filosofia de Platão, afirmara que a natureza está num eterno fluir, de modo que seria impossível apreender algo corruptível com o pensamento), o que justifica para Platão a necessidade da teoria das Idéias, a qual afirma que os vários livros existentes são cópias semelhantes às idéias paradigmáticas e perfeitas.
Por conseguinte a presente crítica discutida se baseia no fato de que essa semelhança (ομοιον) que fundamenta a teoria das idéias a torna absurda, pois um livro é semelhante ao outro devido à Participação (μετεξις), que se dá através da idéia de semelhança que os tornam semelhantes, e se olharmos com a alma essa relação: livros→ LIVRO[1] é necessário que aja outra Idéia que torne semelhante a presente forma com os livros sensíveis, e essas relações se estenderiam ao infinito, o que torna a teoria das Idéias uma complexidade desnecessária para explicar a realidade.Essa explicação do argumento do terceiro homem se baseia predominantemente no diálogo Parmênides e não na Metafísica de Aristóteles, onde a crítica é nomeada como argumento do terceiro homem.
[1] Onde os livros múltiplos e sensíveis participam da idéia una e eterna de LIVRO.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Canônica epicúrea


Epicuro, segundo Diógenes Laércio, dividiu a filosofia em três segmentos (X, 29): a ética, a física e a canônica. De toda a vasta obra de Epicuro, apenas três cartas chegaram até os dias atuais, a saber: a carta a Menoiceus, a carta a Herôdotos e a carta a Pitoclés, tendo respectivamente como conteúdos predominantes a ética, a física e a astronomia/meteorologia. Mas a obra de Epicuro que trata especificamente da canônica, a qual tinha por título Cânon (κανων) não foi preservada para a posteridade e o que sabemos da canônica epicúrea se deve principalmente a transcrição feita por Diógenes Laércio (na sua obra intitulada Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres) da carta a Herôdotos em que Epicuro fundamenta o conhecimento da natureza (φυσις) através de poucas referências a canônica. Mas o que é canônica? Pretendo esclarecer essa questão simples, mas que não pode ser desmerecida, neste texto em que volto, depois de alguns meses estudando a obra de Epicuro, a comentar a filosofia do jardim.


O termo "Canônica" deriva da palavra grega Cânon (κανων), que pode significar, entre outros significados (segundo o Dicionário Grego-Português e Português-Grego de Isidro Pereira): "molde, princípio", portanto o termo canônica deve ser entendido como o princípio da filosofia, uma introdução à qual todo o desenvolvimento da investigação deve ser moldado, assim como o canôn das escrituras bíblicas deveria se submeter a moldes e regras estabelecidas pelos anciãos, o cânon filosófico de Epicuro deve se submeter às regras e moldes do conhecimento.


A canônica, pois, explicita de que modo obtemos o conhecimento e, claro, o fato de que podemos conhecer. Na carta a Herôdotos Epicuro nos fala que aquilo que conhecemos da natureza deriva do movimento dos átomos que se desprendem dos corpos sólidos e atingem nossos sentidos. As vibrações dos átomos nos corpos fazem com que eles se desprendam, produzindo imagens (ειδωλου) (50) que são capazes de atingir os nossos orgãos sensoriais (αι'σθητηριον), que por sua vez, formam representações (φαντασιαν) em nossa mente, as quais permitem o conhecimento da natureza. Por conseguinte, é necessário outorgar aos sentidos total credibilidade em relação ao conhecimento e admitir que quando erramos não se trata de um falha dos sentidos, mas de uma opinião ou julgamento precipitado.


Observamos que há uma inter-relação entre os segmentos da filosofia de Epicuro, pois a canônica estabelece a possibilidade de conhecer a natureza, mas a própria canônica depende dos conhecimentos físicos para se fundamentar, e o mesmo é visível na ética que depende tanto da física quanto da canônica. Portanto, se há uma divisão na filosofia de Epicuro ela é um expediente utilizado pelos historiadores da filosofia para esclarecer e ordenar melhor o seu objeto de estudo e não uma divisão real no pensamento do filósofo. Espero que este texto tenha sido profícuo no intento de esclarecer um pouco da filosofia epicúrea.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Os filósofos empiristas

O empirismo é uma corrente filosófica que afirma que todo conhecimento humano é proveniente dos sentidos, ou seja, as idéias que temos em nossa mente são advindas das impressões sensíveis. De modo que, nenhuma idéia há na mente humana, por mais complexa que essa idéia seja, que não tenha sido antes uma simples sensação dos objetos externos ou um sentimento interno como raiva, paixão, amor, etc.
HUME
Hume afirma que as impressões são mais vívidas e fortes do que as idéias, pois, quando tento lembrar do gosto de uma maçã que comi ontem, a idéia do sabor da maçã é fraca e embaçada se comparada com a sensação que tive no dia anterior, que era vívida e forte. O mesmo ocorrendo com as impressões internas como medo e raiva, pois um homem que sinta o descontrole da raiva num momento e depois relembre a sensação passada, não perceberá aquele sentimento de raiva com a mesma força. Portanto, as impressões são percepções vívidas e fortes e as idéias percepções fracas e embaçadas.
LOCKE
Ao criticar a teoria das idéias inatas, Locke sustenta que o que nos é inato é a capacidade de conhecer e não as idéias. Sendo assim, surge a necessidade de explicar como se dá o conhecimento. Locke afirma que o conhecimento é formado por idéias derivadas da experiência sensível e da reflexão, pois há idéias oriundas das sensações de objetos externos, como o computador que está na minha frente agora e idéias derivadas da reflexão sobre as operações de nossas próprias mentes, como o pensamento, o duvidar, o crer etc.
BERKELEY
Para Berkeley as idéias são os objetos do conhecimento humano, pois se imprimem na mente através dos sentidos, são percebidas nas operações da mente e são delas que lançamos mão quando nos lembramos de eventos passados, quando imaginamos eventos futuros ou quando criamos seres fantásticos em nossa mente. As idéias vêm à nossa mente através dos sentidos, cada sentido recebe idéias específicas, as quais, quando agem sobre os sentidos simultaneamente, configuram algo como uma fruta, um carro ou uma mesa, pois ser é ser percebido, e por isso, algo só existe quando há quem o perceba através dos sentidos. Portanto, no processo do conhecimento se faz necessário a existência de um agente perceptivo, a saber: a mente ou o eu, pois, as idéias ou sensações não são independentes e não podem existir sem uma mente que os perceba.
BACON
Bacon pretende reformular o saber, demolir a noções falsas que levam o homem ao erro (ídolos) e erigir um saber verdadeiro advindo da experiência, comprometido com a sociedade na medida em que busca torna-la melhor, pois o saber não se resume apenas ao saber, mas saber é poder.

quinta-feira, 18 de junho de 2009


A natureza e o mundo arendtianos

O mundo é produto da fabricação do homem, pois através de seus artifícios o homem cria uma barreira que se interpõe entre ele e a natureza. O homem fabrica seu próprio mundo para burlar o movimento circular e homogêneo da natureza em que os representantes das espécies surgem e desaparecem, pois os homens, diferente dos outros animais, não se resumem apenas ao seu funcionamento biológico animal, pois são animais políticos, que falam e que necessitam, portanto, instaurar um mundo que sirva de assunto entre eles, e, além disso, necessitam dar um caráter imortal ao mundo comum e humano que sirva de abrigo para receber os novos indivíduos mortais que nascem e que seja permanente ao contrário daqueles habitantes que seguiram em linha reta até a morte. Porém a natureza, ao contrário do mundo comum e humano, é inteiramente dada, é o pano de fundo em que os representantes das espécies animais surgem e desaparecem, desempenhando sempre aquilo que estavam programados bioquímicamente pela espécie num processo cíclico e homogêneo.


A fragilidade do mundo comum e humano

A fragilidade do mundo comum e humano não reside na espécie humana, nem no mundo enquanto abrigo dos homens, o qual é produzido pela fabricação, mas no mundo enquanto assunto dos homens ou no lado público do mundo. Pois ao contrário das obras humanas que tomam emprestado da natureza a sua matéria, a ação e a fala não têm um caráter estável. Pois a ação e a fala só permanecem durante o tempo em que são efetivadas, não são duráveis, de modo que, o lado público do mundo só existe na pluralidade humana, pois, quando os homens se dispersam, se isolam ou quando interrompem o agir e o falar, não há mais lado público do mundo. O agir e o falar necessitam de serem tornados reais e tangíveis, de serem reificados, para poderem ser lembrados pelas gerações futuras e o processo gerado por aqueles não seja perdido. Mas quando a ação e a fala são feitos produtos da fabricação, tal fabricação não tem o mesmo efeito sobre aqueles que o sentem depois do processo de reificação, do que sobre aqueles que estavam presentes no frágil momento em que homens plurais agiram e falaram. Além disso, a ação e a fala são imprevisíveis, pois resultam da liberdade humana, são irreversíveis, pois ocorrem linearmente no tempo, e seus autores são anônimos.

A solução grega para a fragilidade do "lado público do mundo"


A solução grega para a fragilidade do lado público do mundo foi instaurar um meio de “preservar a teia das relações humanas”, de modo que o agir e o falar não fossem interrompidos pelo isolamento ou dispersão humanos, ou seja, a pólis. Os gregos instituíram a ação e a fala como a mais importante atividade humana no momento em que distinguiram o lado privado do lado público do mundo, pois o lado privado, ou o lar, é o campo da necessidade, em que os homens agem meramente para satisfazer suas necessidades, impulsionados por suas animalidades, enquanto que no lado público os homens agem com liberdade e são vistos como detentores da virtude da coragem, sentem-se mais humanos e menos animais. Assim, desejosos de fama e glória, os gregos se lançam no lado público do mundo e o fortalecem.

Poder, força e autoridade

O poder tem sido confundido com a mera força violenta e coativa, pois é entendido na relação domínio-submissão, mas a força é exercida por um homem isolado, enquanto que o poder só é exercido entre homens em sua pluralidade e em condições de igualdade entre si, não compreendendo uma relação de mando e obediência, mas uma relação de consentimento às leis estabelecidas por eles mesmos, tal qual na tradição greco-romana. E é aqui que o conceito de autoridade se insere, uma vez que autoridade não é uma manifestação da força coativa para com os subordinados, mas é a capacidade de obter obediência sem o uso da violência ou persuasão, a autoridade é consentida por quem obedece, pois foram os homens plurais e em igualdade que estabeleceram, através do acordo entre os homens que se encontra na potencialidade do agir e falar, quem e o que deveria exercer autoridade. De modo que aquele que renuncia o lado público do mundo, renuncia ao poder, pois o poder funda a convivência entre os homens e a preserva.

A solução platônica para as calamidades da ação

As calamidades da ação são: a imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores. E a solução platônica para esses problemas começa a se configurar quando da morte de Sócrates, a qual patenteou o declínio gritante que a polis vinha sofrendo desde a guerra do peloponeso, e que definitivamente desiludiu o filósofo em relação à política. Num momento em que a ação e a fala visavam somente interesses próprios, e só interessava a conveniência do mais forte, uma vez que se poderia dizer tudo sobre qualquer coisa e defender pontos de vista opostos com a mesma persuasão, aparece com Platão a primeira perspectiva filosófica com relação à política: não há necessidade da pluralidade humana, pois nossas ações devem ser guiadas pela razão, basta nos concentrarmos na contemplação para conhecermos o ser e agir segundo esse conhecimento dado pela razão, pois não há necessidade de se arriscar se lançando no lado público do mundo em ações temerárias, imprevisíveis e irreversíveis.

domingo, 31 de maio de 2009

A dádiva dos deuses



INTRODUÇÃO


O diálogo Filebo foi escrito no período da maturidade de Platão, momento em que os diálogos Platônicos atingem o apogeu de suas discussões teóricas. Essa obra foi desenvolvida a partir do espanto (thaumátzein) gerado pela questão do “Bem” na vida dos “seres animados”: Qual é a vida boa, a vida de prazer (hedoné) ou a de sabedoria (fronésis)? (11b-c) Para examinar essa questão Sócrates logo propõe o estudo da natureza do prazer e da sabedoria e apela para o princípio do uno e do múltiplo, afirmando que o prazer, embora uno, também é múltiplo e contém em si espécies opostas (12c). Como todo bom investigador Sócrates tem um método ou caminho (hodós), ao qual segue para atingir seus objetivos na investigação, e é sobre este caminho, o qual “é uma dádiva dos deuses para os homens”, que eu irei abordar, tendo como lastro: o próprio texto ( não recorrendo ou fazendo paralelo a nenhum outro diálogo de Platão nem a texto de outro filósofo); minhas lembranças e anotações dos temas discutidos e expostos em sala de aula e a ajuda de artigos de alguns comentadores. Mas, antes de discorrer sobre o tema proposto, farei algumas advertências gerais sobre a leitura dessa obra.
Ao lermos o Filebo devemos tomar certas precauções que nos ajudarão a compreendê-lo melhor. Primeiramente devemos ter em vista que esse diálogo, quando sujeito às interpretações cristãs, parece indicar uma repulsa aos prazeres corporais e uma exaltação aos prazeres espirituais, porém tal interpretação é tendenciosa e falsa, pois Platão nunca foi contra os prazeres do corpo, mas contra os exageros dos hedonistas que têm como seu representante maior Aristipo de Cirene[1].
Outra perspectiva temerária é a de que o Filebo foi formado das sobras de outros diálogos de Platão, os partidários deste ponto de vista argumentam que as transições de um tema para o outro são tão abrutas que o autor deve ter “costurado” as partes de diferentes diálogos para fazê-lo. Isso explicaria a dificuldade e os problemas que essa obra tem infligido aos estudiosos que se debruçam sobre ela. Entretanto é preciso ter em vista a simetria que este diálogo apresenta em algumas passagens e também a intencionalidade estilística de Platão.
E uma última advertência: não se deve considerar Platão um filósofo dogmático, mas como um pensador que discute as teses defendidas em sua época, as quais eram tidas como certas e propaladas sem a devida reflexão.
Este trabalho se propõe a demonstrar como (por qual método) os homens podem ser tirados desse estado de irreflexão e beneficiados por uma dádiva dos deuses trazida pelo filósofo, tal qual um Prometeu (16c), para iluminar os passos daqueles com a centelha divina do conhecimento. O caminho anunciado por Sócrates é um presente divino, o qual embora difícil de ser percorrido, não deixa de ser o mais belo de todos e nos leva em direção às realidades “sempre as mesmas”. Tal caminho é o método da divisão (diáiresis[2]) utilizado por Sócrates na investigação acerca do prazer e do conhecimento no Filebo.
Feitas as devidas advertências e esclarecimentos acerca do tema em questão, passemos ao exame deste.




CAPÍTULO I

A DÁDIVA DOS DEUSES PARA OS HOMENS



...Não há nem pode haver caminho mais belo do
que o que eu sempre amei, mas que perco mui
frequentemente , ficando sempre na maior
perplexidade.

[...]
Até onde compreendo, trata-se de uma dádiva
dos deuses para os homens, jogada aqui para
baixo por intermédio de algum prometeu ,
juntamente com um fogo de muito brilho.
(Platão, Filebo 16b;c)


O paralelo feito por Sócrates entre o caminho (hódos) seguido por ele e o fogo (pyrí) de Prometeu parece nos indicar algumas características desse caminho:
(a) Assim como o poder de iluminação do fogo traz em si a capacidade de distinguir, de diferenciar o que antes estava na indistinção infinita das trevas, o caminho socrático elucida os limites, a unidade na infinita multiplicidade (16d).

(b) Do mesmo modo que o fogo deu aos homens o poder e o conhecimento para modificar o estado dos elementos da natureza, esse caminho nos dá a capacidade de tornar as idéias maleáveis: num momento são múltiplas e em outro são unas (14c).

(g) À maneira do fogo, que permitiu a perpetuação da espécie humana, que era frágil e sem qualidades, o caminho nos outorga o poder de preservar e perpetuar o conhecimento nos atos de investigar, ensinar e aprender (16e).

Essas são algumas características do “caminho mais belo” (kalíon hodós) do qual Sócrates fala com tanto ardor. Porém, observamos que essas características nos apresentam alguns conceitos, tais quais: uno e múltiplo, finito e infinito, distinção e indistinção, conhecimento, investigação, ensino, aprendizagem, idéias. Esses conceitos, e mais alguns, se encontram inseridos no “embrulho” do presente (dósis) dos deuses com o qual fomos contemplados, de modo que, é evidente que a dia/iresij[3] ou método da divisão abarca em si muitas partes componentes, tal qual os objetos de sua divisão.
O método da divisão como o próprio nome indica, é um método que tem a função de separar, no processo dialético, as opiniões vazias (kenón dóxai), a fim de depurar os conceitos até atingir a idéia peculiar (16d) de cada coisa, porém não é a única aplicação desse método, pois nos passos 16d-17a do Filebo ele exerce a função de separar o número de Espécies que contêm determinado Gênero, com o objetivo de propiciar um conhecimento que possa ser compartilhado entre os homens à exemplo do alfabeto de Teute (18b-d). Mas acredito que esse método pode ser mais bem compreendido quando examinados os seus princípios, dos quais destaco neste trabalho:

(A) O princípio do Uno e do Múltiplo;


(B) O princípio do Limitado e do Ilimitado.


CAPÍTULO II

O UNO E O MÚLTIPLO


...Refiro-me ao princípio em que tropeçamos neste
momento, de natureza maravilhosa, pois é mara-
vilha dizer-se que o uno é múltiplo, e o múltiplo
um, sendo muito fácil contestar quem só defen-
der uma dessas posições.
(Platão, Filebo 14c)

O princípio do uno e do múltiplo surge no diálogo Filebo da necessidade de se conhecer a natureza (phýsin) do prazer (hedoné) (12c). E desde o início desse exame o princípio do uno e do múltiplo está presente nas palavras de Sócrates, pois como ele mesmo disse: “circula, agora e sempre, por tudo o que falamos” (15d). Após ter elucidado de maneira didática através do exemplo das cores a relação entre unidade e multiplicidade, exorta seus interlocutores da ingenuidade de confiar num argumento que apresente uma unidade apenas nominal, ou seja, a unidade advinda do termo utilizado para designar algum gênero, a qual une, inadvertidamente, muitas espécies opostas (13a). Entretanto, Sócrates não tem a felicidade de ser compreendido satisfatoriamente, pois Protarco insiste em afirmar que o prazer enquanto prazer não pode diferir de si mesmo (13c).
Dentro dessa conjuntura o problema do uno e do múltiplo é apresentado e discutido, a dificuldade e as controvérsias desse tema não estão relacionados com a unidade e multiplicidade das coisas corruptíveis como Protarco imaginava (14d,e), mas com as “que nem nascem nem perecem” (15a), a saber, as Formas (eidós). Pois não é nas coisas sensíveis e plurais que se encontram as definições do que as coisas são, mas naquilo que é comum a todas: nas Formas unas das quais participam a multiplicidade sensível. Por conseguinte, quando se trata de falar da unidade e multiplicidade das Formas ou Idéias (idéa[4]) é que surgem as maiores dificuldades e controvérsias, pois como uma Forma una e eterna pode vir a ser múltipla, ou seja, mudar, sem, contudo, deixar de ser o que é: una e eterna? (15b) Acredito que essa questão deve ser entendida à luz do passo 13a, no qual Sócrates explica a sua afirmação de que o prazer é variado e múltiplo, utilizando-se do exemplo das cores, as quais enquanto gênero são sempre as mesmas, mas como espécies são múltiplas e se opõem umas as outras. Podemos, então, afirmar que não só as coisas sensíveis participam das Formas, mas que há Formas que participam de Formas. Alguns comentadores, como Francisco Bravo[5], indicam a diferença terminológica que Platão faz entre a Forma genérica e a Forma específica, as quais seriam designadas respectivamente por Hênada e Mônada, da minha parte, prefiro chama-los, simplesmente, de Gênero e Espécie. De modo que, se pensarmos na Idéia de homem justo, essa Idéia será uma Espécie do Gênero Homem ou, se seguirmos o exemplo de Francisco Bravo, a Mônada homem justo participa da Hênada Homem. Assim, podemos entrever uma solução para a unidade na multiplicidade, onde as Espécies são múltiplas e plurais e os Gêneros são unos e sempre os mesmos.
Ponto de partida para o método da divisão, o princípio do uno e do múltiplo é responsável pela busca da Idéia peculiar (mían idéan) (16d) de todas as coisas (perí pantós). Idéia primitiva que nos permitirá quantificar as suas espécies e consequentemente fazer ciência, uma vez que, se aplicarmos, sem o devido exame, à multiplicidade a idéia de infinito não poderá haver conhecimento, visto que, o ilimitado ou infinito não é dado a conhecer. Portanto devemos reduzir toda a pluralidade a uma única Idéia ou Gênero e a partir daí, tentar encontrar as Espécies que participam desse Gênero – os números intermediários - e também reduzi-las da multiplicidade sensível para uma multiplicidade Específica. Os Sofistas[6] lançavam mão desse princípio para persuadir as grandes multidões, porém não o utilizavam de modo adequado, pois saltavam indevidamente do uno para o múltiplo sem o exame dos intermediários (17a), pois não buscavam a verdade sobre determinado assunto, mas somente a honra de vencer uma disputa.
O princípio do uno e do múltiplo é indispensável para a diáiresis ou método da divisão, pois os antigos que “viviam mais perto dos deuses” diziam que tudo que existe “provêm do uno e do múltiplo e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito” (16c), porém, quando mal utilizado, gera “toda sorte de dificuldades” (aporían) (15c), o que muitas vezes, contribui para o estado de perplexidade em que coloca aquele que se perde por suas veredas (16b).


CAPÍTULO III

O LIMITADO E O ILIMITADO

...Tudo o que se diz existir provém do uno e do múltiplo
e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito.
(Platão, Filebo 16c)

Sócrates, ao apresentar aos seus interlocutores o caminho pelo qual deveriam seguir, inclui no “pacote” do presente divino, juntamente com o princípio do uno e do múltiplo, o princípio do Limitado e do Ilimitado (péras dè kài apeirían).
Do mesmo modo que o Uno e o Múltiplo, o Limitado e o Ilimitado também se referem, nas discussões mais elevadas, às Formas ou Idéias. Porém a tradução de Carlos Alberto Nunes[7] (mas não apenas ela) pode nos fazer incorrer em erro devido à ausência do advérbio “sempre” (aeí) no passo 16c, pois poderíamos traduzir o)/ntwn tw=n a)ei£ legome/nwn ei)=nai por “as coisas que são ditas serem sempre[8]”. Por um lado essa passagem apresenta uma ambigüidade gramatical, visto que, também poderia ser traduzido por: “as coisas que sempre são ditas serem”, mas, por outro, se levarmos em conta que Sócrates e Protarco já haviam acordado, no passo 15a, que há coisas “que nem nascem nem perecem”, ou seja, as Formas, tornar-se-á plausível que Sócrates se refere no passo 16c às formas sempre as mesmas que proviriam do uno e do múltiplo e trazem em si o Limitado e o Ilimitado.
Assim, Sócrates adverte seus interlocutores a não caírem no mesmo erro dos “sábios de nosso tempo” que, ao examinarem algum assunto, olham de imediato para a natureza do infinito, e não se detêm nos números intermediários (18a), ou seja, se investigarmos a Idéia de Homem, a qual é finita e limitada, mas ilimitada e infinita no que tange ao conhecimento e, portanto, abrange muitas espécies como homem temperante, homem sábio, homem forte etc., não devemos a deixar cair no infinito da ignorância, mas buscar incessantemente os seus números intermediários entre o finito e o infinito, que é a única maneira de se fazer ciência.
Percebemos aqui, que uma Idéia una pode ser finita e infinita:


a) Infinita: É uma ilimitação gnoseológica que ocorre apenas antes do exame.

b) Finita: Após a depuração dialética é uma unidade definicional e, portanto, finita e limitada que atingiremos.

No que toca a multiplicidade, só há ilimitação infinita.

Até aqui por algumas vezes falamos dos Números Intermediários, mas não explicamos o que significam, embora tenhamos dado uma idéia quando os aplicamos no contexto do uno e do múltiplo e do Limitado e do Ilimitado. De modo que podemos, em poucas palavras, esclarecer a sua significação. Sócrates indica que a observância dos Números Intermediários é a característica fundamental para distinguir um dialético (que se utiliza da diáiresis) de um sofista que tem seu prazer apenas no embate do diálogo (17a), tendo em vista que, esses Números Intermediários são os que se interpõem entre o finito e o infinito no processo de investigação, manifestando, assim, o seu caráter misto de Limite e Ilimitado, possibilitando, quando examinados, o conhecimento que antes estava velado pela infinitude que a unidade abarcava.
Podemos apontar também, dentro do princípio em questão, o princípio da comunhão (koinwnía) entre o Limitado e o Ilimitado que exige, portanto, o Método da divisão e que se evidencia no passo 18c,d no “elo de ligação” das letras do alfabeto de teute.
Portanto, na busca investigativa do Prazer, como ocorre no Filebo, o Limitado e o Ilimitado e sua comunhão, estão presentes no processo da diáresis, pois a Idéia de Prazer é separada em Espécies as quais, por sua vez, são classificadas na busca pelo verdadeiro Prazer ou pela prova de que o prazer não é o Bem.





CONCLUSÃO


O método da divisão é uma dádiva divina, pois permite aos homens o exame, a busca pela verdade, a qual se encontra na essência do filósofo. É um método negativo, pois não propõe, mas investiga, descartando as opiniões falsas que obscurecem o caminho da verdade, tem então, um “fogo de muito brilho” (16c) que ilumina a caminhada para dissipar todas as opiniões vazias até atingir a Idéia peculiar, porque aquele que detêm o poder da diáiresis busca sempre o que é da mesma maneira, ou seja, as Idéias.
Vimos também que a diáiresis é utilizada de várias maneiras, pois os seus princípios lhe permitem diferentes usos, mas que têm sempre o mesmo alvo: a busca pelo conhecimento do ser.
A divisão dos Gêneros em suas espécies, quando se parte do uno para o múltiplo, ou quando iniciamos do múltiplo infinito para o uno finito (18a,b) é um trabalho minucioso que exige esforço da parte de quem se propõe a caminhar por esse caminho de grande dificuldade, mas foram os esforços de grandes homens que permitiram o nosso acesso a tudo o que diz respeito às artes (techné) (16c).
A diáiresis, portanto, é uma dádiva divina na medida em que permite a apreensão daquilo que transcende o conhecimento do sensível, ou seja, um conhecimento que está na sensibilidade, mas que vai além dele, que o sobrepuja, que está além das capacidades básicas humanas, que é divino.
O exercício do pensamento filosófico está sempre em busca do além, daquilo que não se sabe, mas que procura conhecer (fílos/sofía), visto que os filósofos buscam a sofía, o saber divino theón, do qual eram detentores “os antigos que eram melhores do que nós” (16c), ou seja, os sofós. Pois os homens de hoje não são detentores do saber divino, mas querem apenas, estruturar o saber humano. Por isso o esforço dispensado no método da divisão para estruturar o conhecimento humano e poder perpetuá-lo nos atos de investigar, ensinar e aprender.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



PLATÃO ─ Diálogos, Vol. VIII ─ FILEBO, Trad. Carlos Alberto Nunes, ed. UFPA, Belém, 1974.

Estudos sobre o diálogo Filebo de Platão: A procura da eudaimonia/ Org. Hector Benoit. ─ Ijuí: Ed. Unijuí, 2007 (Coleção Filosofia;23)

Diálogo Filebo, versão original; ed. Burnet, 1903; disponibilizado na internet.




[1] Fundador da escola cirenaica e discípulo de Sócrates. Segundo Aristipo o télos da vida é o gozo do prazer imediato.
[2] Procedimento dialético utilizado para encontrar as articulações naturais do ser.
[3] Separação, divisão, distinção, discriminação.
[4] É uma palavra cognata de ei)=do/j.
[5] Artigo: O método da divisão e a divisão dos prazeres no Filebo de Platão.
[6] Grupo de mestres que ensinavam jovens abastados em troca de altas somas de dinheiro.
[7] Platão- Diálogos, Vol. VIII – Filebo, trad. Carlos Alberto Nunes, ed. UFPA.
[8] George Rudebusch – Artigo: O presente dos deuses e a divisão em quatro gêneros no Filebo de Platão.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A arte em Platão


INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto das aulas expositivas do professor Ramos Coelho na disciplina de Estética filosófica, tendo como fonte primordial uma de suas aulas de mesmo tema.
A arte em Platão ou a crítica que este faz àquela é um tema que vem sendo abordado desde longa data, tema este que suscitou críticas ferrenhas dos opositores do pensamento de Platão. Será uma contradição de Platão o fato de criticar, ao ponto de querer banir de sua cidade ideal os poetas (livros II, III, X da República), quando ele mesmo foi educado na leitura de Homero? E ele, Platão, não seria ao mesmo tempo crítico e alvo dessas mesmas críticas, tendo em vista que ele no passado fora um dramaturgo e então um filósofo poeta?
Tentarei abordar esses tópicos de maneira despretensiosa, buscando apenas me inteirar desse tema de grande importância para a compreensão deste, que é um dos maiores filósofos ou quem sabe o maior deles, a quem já atribuíram o título de divino e fonte de toda a filosofia ocidental, da qual as outras filosofias e sistemas são apenas notas de rodapé, Platão.





QUAL O LUGAR DA POESIA NA CIDADE IDEAL?

Dentre os diálogos platônicos aquele que aborda mais detidamente o tema das artes (poiésis) é A Politéia ou A República, embora não seja esse o seu assunto principal, e sim a justiça. De modo que suas personagens guiadas por Sócrates decidem ampliar a sua visão, deixando de procurar a justiça nos indivíduos para investigá-la em uma cidade idealizada por eles. Examinando cada aspecto da cidade eles se deparam em dado momento com a educação de seus cidadãos e em particular dos guardiões da cidade. Como se deveriam educar aqueles que defenderiam a cidade de seus inimigos? A educação tradicional daria conta da feitura do bom cidadão?
Nos livros II, III, X d’A República, Platão indica que os poetas tradicionais gregos, inclusive Homero, apesar do reconhecimento de sua genialidade por Platão, deveriam ser censurados em determinados aspectos, os quais seriam nocivos no que tangem a formação moral dos cidadãos da pólis.
Os mitos de cosmogonias e teogonias, produzidos pelos poetas, com suas narrativas plenas de conflitos entre deuses, muitas vezes causados pela volúpia, inveja e mentira das próprias divindades, infanticídios, parricídios, adultérios, enganos, dissimulações, praticados pelos deuses poderiam vir a dar credibilidade a tais ações imorais e ilegais. Ainda que se diga, em defesa dos mitos, que eles narram alegoricamente, devemos ter em vista que uma criança não tem ainda a sua racionalidade plenamente desenvolvida, de modo que ao ouvir essas histórias da boca de seus pais, poderiam vir a praticar, segundo o exemplo gravado em sua memória, dado a susceptibilidade das crianças, as mesmas atitudes execráveis em situações semelhantes. E ademais esses mitos são mentirosos, tendo em vista que não se deve atribuir aos deuses, que são de todo bons e perfeitos, atitudes como as descritas acima, e a mentira não deve fazer parte da educação das crianças.
Esse argumento de Platão se assemelha bastante a uma das opiniões da discussão vigente na atualidade a respeito dos jogos eletrônicos que incentivariam a violência ao apresentarem personagens que roubam carros, matam velhinhas e outros jogos em que o objetivo primordial é mutilar o adversário sem nenhum motivo aparente. Mas existem outros videogames que são educativos e até ajudam na formação das crianças, trabalhando a coordenação motora e a rapidez de raciocínio. E essa exceção que existe nessa discussão atual também existia no tempo de Platão quanto às artes. Mas antes de apresentar a exceção, ainda examinarei outros pontos da crítica platônica das artes.
Mais especificamente quanto aos guardiões da cidade ele adverte que não se deve estimular o temor exagerado da morte através de mitos e histórias contadas a respeito do hades ou do inferno, em que eles aparecem como lugares de tormento e punição, tendo em vista que o guardião ao enfrentar seus inimigos em batalha não deve temer a morte de modo mais intenso do que a derrota. E, além disso, não deprimir-se com a morte de um amigo, de modo a desistir da luta. O guardião deve ser corajoso e forte e, para tal, a sua educação não deve abarcar narrativas em que deuses aparecem se lamentando como o mais vil dos homens.
Portanto, na pólis, as artes devem ser condicionadas por tudo que é bom e justo, visando à formação de seus cidadãos. Essa abordagem de Platão não permite afirmar que ele dispensa as artes no seu ideal de cidade, mas somente aquelas que prejudicam uma boa educação. Os homens virtuosos não deveriam, pois, imitar em peças teatrais homens vis, nem loucos, nem qualquer espécie de obscenidade, não porque não poderiam, mas porque não quereriam. Esse é o lugar assegurado para a arte na pólis ideal. E tais críticas da parte de Platão às artes se concentram, num primeiro momento, no campo moral.


A ARTE É UMA CÓPIA DA CÓPIA.

No livro X d’A República Platão faz uma crítica não tão prática como a descrita no capítulo anterior, mas uma crítica que se funda na sua teoria das idéias ou hipótese inteligível. Antes de passarmos à crítica porei em breves palavras o que se entende correntemente a respeito da teoria das idéias.
Basicamente Platão afirma que há dois níveis de percepção: o nível do sensível e o nível do inteligível. O que conseguimos captar através dos sentidos é insuficiente para apreendermos algo, pois quando achamos que sabemos o que algo é, logo o vemos ser transformado pela força do devir e da corrupção e aquilo que captamos já não é mais o que era, e isso ocorre por um motivo: não captamos o que faz com que essa coisa seja o que ela é, a sua idéia. E só no nível do inteligível podemos conhecer satisfatoriamente todas as coisas, desfazendo-nos das sombras sensíveis e corruptíveis que tínhamos por verdadeiras. Assim, quando vemos uma cadeira, vemos algo que participa da idéia de cadeira e que faz com que qualquer cadeira que vemos seja uma cadeira, há várias cadeiras, mas somente uma idéia de cadeira da qual todas participam, a multiplicidade e a unidade, em que a primeira é corruptível e dada aos sentidos e a segunda é eterna, sempre a mesma, incorruptível e dada ao intelecto.
É a partir desse pensamento que Platão faz mais críticas a arte, visto que, ao considerar o criador das idéias (Deus), um criador de coisas perecíveis, por exemplo, um marceneiro que faz uma mesa, e por último, um pintor que também faz essa mesa de uma perspectiva específica, temos pois, três mesas: A MESA, a cópia dessa mesa e a cópia[1] da cópia da mesa. A mesa desenhada pelo pintor está três vezes distante da mesa ideal. A crítica está baseada na comparação entre ciência e arte, esta se encontra, pois, distante da verdade e por isso deve ser considerada inferior à ciência.


A APARENTE CONTRADIÇÃO.

Platão abomina o caráter mimético da arte, no referido caso de exemplo, mas também na poesia, no teatro e nas artes em geral.
Mas o que chama a atenção é que Platão fora um feitor de mímesis no passado[2] e no momento em que escreveu a República continuava sendo. Pois falava na boca de suas personagens como um verdadeiro poeta mimético e escrevia mitos como ninguém de seu tempo. Porque faria críticas a respeito de uma característica que ele mesmo compartilhava? O fato é que ele queria uma mudança paradigmática na educação dos gregos, queria introduzir o lógos calculador na educação dos cidadãos da pólis através do estilo novo que criara: o diálogo filosófico.
Mas será que todas essas críticas tinham por fundamento apenas seu desejo de introduzir-se como educador da Grécia no lugar de Homero? Não. Platão criticou a mímesis? Sim. Ele era mimético? Sim. Mas era o mesmo tipo de mímesis? Claro que não. Agora sim estamos no caminho certo. Esta passagem da República nos esclarecerá essa questão:


...mas, olhando e contemplando objetos ordenados e
que se mantêm sempre do mesmo modo, que não prejudicam
nem são prejudicados uns pelos outros, todos em ordem
(kósmoi) e comportando-se segundo a razão (lógon), é isso
que imitamos (mimeîsthaí) e a isso nos assemelhamos
(aphomoioûsthai) o mais possível (VI, 500b9-c6)[3].


Não são às cópias que Platão imita, mas as idéias perfeitas e imutáveis, esse tipo de arte é permitido e incentivado na cidade idealizada por Platão.


CONCLUSÃO



Platão fez primeiramente críticas de ordem ética e moral baseada no tipo de educação que ele almejava para sua cidade, posteriormente sustentou-se na sua teoria das idéias para fazer a sua crítica mais ferrenha, porém quando lemos A República pela primeira vez temos a impressão de que Platão é totalmente avesso a qualquer tipo de arte, o que se mostrou contraditório pelo fato dele mesmo aparentemente se encontrar inserido na classe de pessoas que ele critica, contradição que foi no mínimo esclarecida neste trabalho. Acredito que toda essa polêmica a que Platão esteve e está sujeito é justificada pelo seu desejo nostálgico de voltar a era de ouro dos sábios em que as palavras diziam exatamente o que as coisas são e a arte talvez estivesse isenta de culpa.




BIBLIOGRAFIA

Rogue, Christophe. Compreender Platão, tradução de Jaime A. Clasen. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
Platão. A República, tradução de Leonel Vallandro. Editora Globo, Porto Alegre-RG, 1964.

Periódico: cadernos uf5-filosofia, Platão e a crítica mimética a mímesis, Jovelina Maria Ramos de Souza. Departamento de Filosofia e Ciências Sociais do Estado do Pará.
[1] O termo utilizado por Platão é Mímesis e significa imagem, cópia, imitação.
[2] Platão antes de escrever diálogos filosóficos escrevia peças.
[3] Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

domingo, 5 de abril de 2009

AS ORIGENS DA FILOSOFIA


1- Onde nasceu a filosofia, Oriente ou Ocidente?

As origens das coisas geralmente estão envoltas em mistério, as origens de um povo, de uma família, de um costume etc. E, por isso mesmo, suscitam polêmicas e discussões ferrenhas. E a mesma coisa acontece quando se buscam encontrar as origens da filosofia.
A discussão acerca das origens da filosofia esteve, num primeiro momento, voltada para o problema Oriente-Grécia. Teria a filosofia nascido na Grécia ou suas origens se encontram no Oriente?
A maioria dos historiadores admite que a filosofia comece com os gregos, ademais é possível observar que, em detrimento dos conhecimentos assistemáticos dos orientais, os gregos do século VI a.C. buscavam uma unidade de compreensão da realidade que coordenasse os dados da esfera sensível numa visão globalizadora. De modo que os “orientalistas” (que defendem a posição de que a filosofia surgiu no Oriente) não puderam comprovar coisa alguma, só conseguiram estabelecer analogias e paralelismos.

2- A mudança de perspectiva.

Houve uma mudança de prisma com o desenvolvimento da arqueologia e o interesse pela mentalidade arcaica ou primitiva. Se antes as origens da filosofia eram estudadas pelos historiadores como se eles procurassem um marco que indicasse: Aqui nasceu a filosofia! Agora percebem que o problema é mais sutil, que se relaciona com um processo que gerou uma mudança de compreensão da realidade. Como a mentalidade mítica deu lugar à mentalidade filosófica?
A partir do século VI, segundo uma tradição que remonta aos próprios gregos antigos, nasce com Tales de Mileto essa nova visão da realidade. Não eram mais os mitos de origem que explicavam e davam sentido a nossa realidade, mas, ao contrário, a nossa realidade cotidiana poderia explicar as origens do universo.

3- Burnet x Conford[1].

J. Burnet e F.M. Conford discutem a questão de como aconteceu essa passagem do mito a filosofia. Burnet defende que a revolução intelectual que se deu entre os Jônios foi inexplicável em termos de causalidade histórica, acontecera o chamado “Milagre grego”, e diz: “seria inteiramente falso procurar a origem da ciência jônica numa concepção mítica qualquer”. Enquanto Conford afirma que não há uma ruptura drástica com os mitos na filosofia, pelo contrário a filosofia se aproxima mais de uma construção mítica do que aquilo a que chamamos ciência. A filosofia nascente apenas laicizou as concepções religiosas e as pôs sob uma linguagem mais abstrata. A questão das origens era a mesma abordada pelos mitos: como o universo nasceu do caos? As explicações são dadas nos mesmos moldes, de modo que os deuses apenas deixaram de ser deuses para serem elementos da natureza. “Por trás desses elementos perfilam-se as antigas divindades da mitologia”. A organização geral do pensamento permanece a mesma entre o físico e o teólogo. Mas apesar das analogias não há continuidade entre o pensamento mítico e a filosofia. Pois há nos filósofos uma nova atitude intelectual. Explicam as origens sem mistérios, ao nível da inteligência humana. As investigações sobre as origens poderiam ser debatidas como qualquer outro fato corriqueiro. Não precisam recorrer aos mitos para entender a realidade, pois basta observar como a natureza opera hoje para saber como ela operou no passado e em sua origem.

4- Por que Tales de Mileto é o primeiro filósofo[2]?

Nietzsche nos explica em sua obra “A filosofia na idade trágica dos gregos” porque devemos levar a sério a tão absurda proposição de Tales: “tudo é água”.
a) A proposição de Tales enuncia algo sobre a origem das coisas. Porém isso ainda deixa Tales na comunidade dos religiosos (fazedores de mitos).
b) Tales chega a essa concepção sem imagens ou fábulas, ou seja, ele é indiferente a toda concepção mítica ou alegórica. Esse aspecto já o separa dessa sociedade (religiosos) e mostra-o como investigador da natureza.
c) Na proposição de Tales está contida a idéia de que “tudo é um”, embora em estado de crisálida. E isso faz de Tales o primeiro filósofo grego.

Tales saltou por cima de todas as teorias físicas da época, usou a ciência e logo em seguida a transcendeu. Aristóteles nos diz na Metafísica que Tales teria chegado a essa concepção devido a suas observações empíricas. Teria percebido que os alimentos de todas as coisas são úmidos e que o calor procede da umidade, que os corpos quando morrem secam etc. Porém Nietzsche nos diz que as observações de Tales “não teriam permitido ou mesmo sugerido esta generalização gigantesca”. Pois a filosofia, ao contrário do pensamento calculador e mensurante (científico), não necessita construir fundamentos que a sustentem para seguir adiante, ela se serve de hipóteses, mesmo frágeis, para seguir rapidamente impulsionada pelo poder da imaginação, do pressentimento e da intuição. Por isso ela chega tão rapidamente ao conhecimento da totalidade – tudo é um.

Renato dos Santos Barbosa.
[1] Vernant, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1986.
[2] Nietzsche, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução de Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70. Coleção textos filosóficos.