domingo, 31 de maio de 2009

A dádiva dos deuses



INTRODUÇÃO


O diálogo Filebo foi escrito no período da maturidade de Platão, momento em que os diálogos Platônicos atingem o apogeu de suas discussões teóricas. Essa obra foi desenvolvida a partir do espanto (thaumátzein) gerado pela questão do “Bem” na vida dos “seres animados”: Qual é a vida boa, a vida de prazer (hedoné) ou a de sabedoria (fronésis)? (11b-c) Para examinar essa questão Sócrates logo propõe o estudo da natureza do prazer e da sabedoria e apela para o princípio do uno e do múltiplo, afirmando que o prazer, embora uno, também é múltiplo e contém em si espécies opostas (12c). Como todo bom investigador Sócrates tem um método ou caminho (hodós), ao qual segue para atingir seus objetivos na investigação, e é sobre este caminho, o qual “é uma dádiva dos deuses para os homens”, que eu irei abordar, tendo como lastro: o próprio texto ( não recorrendo ou fazendo paralelo a nenhum outro diálogo de Platão nem a texto de outro filósofo); minhas lembranças e anotações dos temas discutidos e expostos em sala de aula e a ajuda de artigos de alguns comentadores. Mas, antes de discorrer sobre o tema proposto, farei algumas advertências gerais sobre a leitura dessa obra.
Ao lermos o Filebo devemos tomar certas precauções que nos ajudarão a compreendê-lo melhor. Primeiramente devemos ter em vista que esse diálogo, quando sujeito às interpretações cristãs, parece indicar uma repulsa aos prazeres corporais e uma exaltação aos prazeres espirituais, porém tal interpretação é tendenciosa e falsa, pois Platão nunca foi contra os prazeres do corpo, mas contra os exageros dos hedonistas que têm como seu representante maior Aristipo de Cirene[1].
Outra perspectiva temerária é a de que o Filebo foi formado das sobras de outros diálogos de Platão, os partidários deste ponto de vista argumentam que as transições de um tema para o outro são tão abrutas que o autor deve ter “costurado” as partes de diferentes diálogos para fazê-lo. Isso explicaria a dificuldade e os problemas que essa obra tem infligido aos estudiosos que se debruçam sobre ela. Entretanto é preciso ter em vista a simetria que este diálogo apresenta em algumas passagens e também a intencionalidade estilística de Platão.
E uma última advertência: não se deve considerar Platão um filósofo dogmático, mas como um pensador que discute as teses defendidas em sua época, as quais eram tidas como certas e propaladas sem a devida reflexão.
Este trabalho se propõe a demonstrar como (por qual método) os homens podem ser tirados desse estado de irreflexão e beneficiados por uma dádiva dos deuses trazida pelo filósofo, tal qual um Prometeu (16c), para iluminar os passos daqueles com a centelha divina do conhecimento. O caminho anunciado por Sócrates é um presente divino, o qual embora difícil de ser percorrido, não deixa de ser o mais belo de todos e nos leva em direção às realidades “sempre as mesmas”. Tal caminho é o método da divisão (diáiresis[2]) utilizado por Sócrates na investigação acerca do prazer e do conhecimento no Filebo.
Feitas as devidas advertências e esclarecimentos acerca do tema em questão, passemos ao exame deste.




CAPÍTULO I

A DÁDIVA DOS DEUSES PARA OS HOMENS



...Não há nem pode haver caminho mais belo do
que o que eu sempre amei, mas que perco mui
frequentemente , ficando sempre na maior
perplexidade.

[...]
Até onde compreendo, trata-se de uma dádiva
dos deuses para os homens, jogada aqui para
baixo por intermédio de algum prometeu ,
juntamente com um fogo de muito brilho.
(Platão, Filebo 16b;c)


O paralelo feito por Sócrates entre o caminho (hódos) seguido por ele e o fogo (pyrí) de Prometeu parece nos indicar algumas características desse caminho:
(a) Assim como o poder de iluminação do fogo traz em si a capacidade de distinguir, de diferenciar o que antes estava na indistinção infinita das trevas, o caminho socrático elucida os limites, a unidade na infinita multiplicidade (16d).

(b) Do mesmo modo que o fogo deu aos homens o poder e o conhecimento para modificar o estado dos elementos da natureza, esse caminho nos dá a capacidade de tornar as idéias maleáveis: num momento são múltiplas e em outro são unas (14c).

(g) À maneira do fogo, que permitiu a perpetuação da espécie humana, que era frágil e sem qualidades, o caminho nos outorga o poder de preservar e perpetuar o conhecimento nos atos de investigar, ensinar e aprender (16e).

Essas são algumas características do “caminho mais belo” (kalíon hodós) do qual Sócrates fala com tanto ardor. Porém, observamos que essas características nos apresentam alguns conceitos, tais quais: uno e múltiplo, finito e infinito, distinção e indistinção, conhecimento, investigação, ensino, aprendizagem, idéias. Esses conceitos, e mais alguns, se encontram inseridos no “embrulho” do presente (dósis) dos deuses com o qual fomos contemplados, de modo que, é evidente que a dia/iresij[3] ou método da divisão abarca em si muitas partes componentes, tal qual os objetos de sua divisão.
O método da divisão como o próprio nome indica, é um método que tem a função de separar, no processo dialético, as opiniões vazias (kenón dóxai), a fim de depurar os conceitos até atingir a idéia peculiar (16d) de cada coisa, porém não é a única aplicação desse método, pois nos passos 16d-17a do Filebo ele exerce a função de separar o número de Espécies que contêm determinado Gênero, com o objetivo de propiciar um conhecimento que possa ser compartilhado entre os homens à exemplo do alfabeto de Teute (18b-d). Mas acredito que esse método pode ser mais bem compreendido quando examinados os seus princípios, dos quais destaco neste trabalho:

(A) O princípio do Uno e do Múltiplo;


(B) O princípio do Limitado e do Ilimitado.


CAPÍTULO II

O UNO E O MÚLTIPLO


...Refiro-me ao princípio em que tropeçamos neste
momento, de natureza maravilhosa, pois é mara-
vilha dizer-se que o uno é múltiplo, e o múltiplo
um, sendo muito fácil contestar quem só defen-
der uma dessas posições.
(Platão, Filebo 14c)

O princípio do uno e do múltiplo surge no diálogo Filebo da necessidade de se conhecer a natureza (phýsin) do prazer (hedoné) (12c). E desde o início desse exame o princípio do uno e do múltiplo está presente nas palavras de Sócrates, pois como ele mesmo disse: “circula, agora e sempre, por tudo o que falamos” (15d). Após ter elucidado de maneira didática através do exemplo das cores a relação entre unidade e multiplicidade, exorta seus interlocutores da ingenuidade de confiar num argumento que apresente uma unidade apenas nominal, ou seja, a unidade advinda do termo utilizado para designar algum gênero, a qual une, inadvertidamente, muitas espécies opostas (13a). Entretanto, Sócrates não tem a felicidade de ser compreendido satisfatoriamente, pois Protarco insiste em afirmar que o prazer enquanto prazer não pode diferir de si mesmo (13c).
Dentro dessa conjuntura o problema do uno e do múltiplo é apresentado e discutido, a dificuldade e as controvérsias desse tema não estão relacionados com a unidade e multiplicidade das coisas corruptíveis como Protarco imaginava (14d,e), mas com as “que nem nascem nem perecem” (15a), a saber, as Formas (eidós). Pois não é nas coisas sensíveis e plurais que se encontram as definições do que as coisas são, mas naquilo que é comum a todas: nas Formas unas das quais participam a multiplicidade sensível. Por conseguinte, quando se trata de falar da unidade e multiplicidade das Formas ou Idéias (idéa[4]) é que surgem as maiores dificuldades e controvérsias, pois como uma Forma una e eterna pode vir a ser múltipla, ou seja, mudar, sem, contudo, deixar de ser o que é: una e eterna? (15b) Acredito que essa questão deve ser entendida à luz do passo 13a, no qual Sócrates explica a sua afirmação de que o prazer é variado e múltiplo, utilizando-se do exemplo das cores, as quais enquanto gênero são sempre as mesmas, mas como espécies são múltiplas e se opõem umas as outras. Podemos, então, afirmar que não só as coisas sensíveis participam das Formas, mas que há Formas que participam de Formas. Alguns comentadores, como Francisco Bravo[5], indicam a diferença terminológica que Platão faz entre a Forma genérica e a Forma específica, as quais seriam designadas respectivamente por Hênada e Mônada, da minha parte, prefiro chama-los, simplesmente, de Gênero e Espécie. De modo que, se pensarmos na Idéia de homem justo, essa Idéia será uma Espécie do Gênero Homem ou, se seguirmos o exemplo de Francisco Bravo, a Mônada homem justo participa da Hênada Homem. Assim, podemos entrever uma solução para a unidade na multiplicidade, onde as Espécies são múltiplas e plurais e os Gêneros são unos e sempre os mesmos.
Ponto de partida para o método da divisão, o princípio do uno e do múltiplo é responsável pela busca da Idéia peculiar (mían idéan) (16d) de todas as coisas (perí pantós). Idéia primitiva que nos permitirá quantificar as suas espécies e consequentemente fazer ciência, uma vez que, se aplicarmos, sem o devido exame, à multiplicidade a idéia de infinito não poderá haver conhecimento, visto que, o ilimitado ou infinito não é dado a conhecer. Portanto devemos reduzir toda a pluralidade a uma única Idéia ou Gênero e a partir daí, tentar encontrar as Espécies que participam desse Gênero – os números intermediários - e também reduzi-las da multiplicidade sensível para uma multiplicidade Específica. Os Sofistas[6] lançavam mão desse princípio para persuadir as grandes multidões, porém não o utilizavam de modo adequado, pois saltavam indevidamente do uno para o múltiplo sem o exame dos intermediários (17a), pois não buscavam a verdade sobre determinado assunto, mas somente a honra de vencer uma disputa.
O princípio do uno e do múltiplo é indispensável para a diáiresis ou método da divisão, pois os antigos que “viviam mais perto dos deuses” diziam que tudo que existe “provêm do uno e do múltiplo e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito” (16c), porém, quando mal utilizado, gera “toda sorte de dificuldades” (aporían) (15c), o que muitas vezes, contribui para o estado de perplexidade em que coloca aquele que se perde por suas veredas (16b).


CAPÍTULO III

O LIMITADO E O ILIMITADO

...Tudo o que se diz existir provém do uno e do múltiplo
e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito.
(Platão, Filebo 16c)

Sócrates, ao apresentar aos seus interlocutores o caminho pelo qual deveriam seguir, inclui no “pacote” do presente divino, juntamente com o princípio do uno e do múltiplo, o princípio do Limitado e do Ilimitado (péras dè kài apeirían).
Do mesmo modo que o Uno e o Múltiplo, o Limitado e o Ilimitado também se referem, nas discussões mais elevadas, às Formas ou Idéias. Porém a tradução de Carlos Alberto Nunes[7] (mas não apenas ela) pode nos fazer incorrer em erro devido à ausência do advérbio “sempre” (aeí) no passo 16c, pois poderíamos traduzir o)/ntwn tw=n a)ei£ legome/nwn ei)=nai por “as coisas que são ditas serem sempre[8]”. Por um lado essa passagem apresenta uma ambigüidade gramatical, visto que, também poderia ser traduzido por: “as coisas que sempre são ditas serem”, mas, por outro, se levarmos em conta que Sócrates e Protarco já haviam acordado, no passo 15a, que há coisas “que nem nascem nem perecem”, ou seja, as Formas, tornar-se-á plausível que Sócrates se refere no passo 16c às formas sempre as mesmas que proviriam do uno e do múltiplo e trazem em si o Limitado e o Ilimitado.
Assim, Sócrates adverte seus interlocutores a não caírem no mesmo erro dos “sábios de nosso tempo” que, ao examinarem algum assunto, olham de imediato para a natureza do infinito, e não se detêm nos números intermediários (18a), ou seja, se investigarmos a Idéia de Homem, a qual é finita e limitada, mas ilimitada e infinita no que tange ao conhecimento e, portanto, abrange muitas espécies como homem temperante, homem sábio, homem forte etc., não devemos a deixar cair no infinito da ignorância, mas buscar incessantemente os seus números intermediários entre o finito e o infinito, que é a única maneira de se fazer ciência.
Percebemos aqui, que uma Idéia una pode ser finita e infinita:


a) Infinita: É uma ilimitação gnoseológica que ocorre apenas antes do exame.

b) Finita: Após a depuração dialética é uma unidade definicional e, portanto, finita e limitada que atingiremos.

No que toca a multiplicidade, só há ilimitação infinita.

Até aqui por algumas vezes falamos dos Números Intermediários, mas não explicamos o que significam, embora tenhamos dado uma idéia quando os aplicamos no contexto do uno e do múltiplo e do Limitado e do Ilimitado. De modo que podemos, em poucas palavras, esclarecer a sua significação. Sócrates indica que a observância dos Números Intermediários é a característica fundamental para distinguir um dialético (que se utiliza da diáiresis) de um sofista que tem seu prazer apenas no embate do diálogo (17a), tendo em vista que, esses Números Intermediários são os que se interpõem entre o finito e o infinito no processo de investigação, manifestando, assim, o seu caráter misto de Limite e Ilimitado, possibilitando, quando examinados, o conhecimento que antes estava velado pela infinitude que a unidade abarcava.
Podemos apontar também, dentro do princípio em questão, o princípio da comunhão (koinwnía) entre o Limitado e o Ilimitado que exige, portanto, o Método da divisão e que se evidencia no passo 18c,d no “elo de ligação” das letras do alfabeto de teute.
Portanto, na busca investigativa do Prazer, como ocorre no Filebo, o Limitado e o Ilimitado e sua comunhão, estão presentes no processo da diáresis, pois a Idéia de Prazer é separada em Espécies as quais, por sua vez, são classificadas na busca pelo verdadeiro Prazer ou pela prova de que o prazer não é o Bem.





CONCLUSÃO


O método da divisão é uma dádiva divina, pois permite aos homens o exame, a busca pela verdade, a qual se encontra na essência do filósofo. É um método negativo, pois não propõe, mas investiga, descartando as opiniões falsas que obscurecem o caminho da verdade, tem então, um “fogo de muito brilho” (16c) que ilumina a caminhada para dissipar todas as opiniões vazias até atingir a Idéia peculiar, porque aquele que detêm o poder da diáiresis busca sempre o que é da mesma maneira, ou seja, as Idéias.
Vimos também que a diáiresis é utilizada de várias maneiras, pois os seus princípios lhe permitem diferentes usos, mas que têm sempre o mesmo alvo: a busca pelo conhecimento do ser.
A divisão dos Gêneros em suas espécies, quando se parte do uno para o múltiplo, ou quando iniciamos do múltiplo infinito para o uno finito (18a,b) é um trabalho minucioso que exige esforço da parte de quem se propõe a caminhar por esse caminho de grande dificuldade, mas foram os esforços de grandes homens que permitiram o nosso acesso a tudo o que diz respeito às artes (techné) (16c).
A diáiresis, portanto, é uma dádiva divina na medida em que permite a apreensão daquilo que transcende o conhecimento do sensível, ou seja, um conhecimento que está na sensibilidade, mas que vai além dele, que o sobrepuja, que está além das capacidades básicas humanas, que é divino.
O exercício do pensamento filosófico está sempre em busca do além, daquilo que não se sabe, mas que procura conhecer (fílos/sofía), visto que os filósofos buscam a sofía, o saber divino theón, do qual eram detentores “os antigos que eram melhores do que nós” (16c), ou seja, os sofós. Pois os homens de hoje não são detentores do saber divino, mas querem apenas, estruturar o saber humano. Por isso o esforço dispensado no método da divisão para estruturar o conhecimento humano e poder perpetuá-lo nos atos de investigar, ensinar e aprender.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



PLATÃO ─ Diálogos, Vol. VIII ─ FILEBO, Trad. Carlos Alberto Nunes, ed. UFPA, Belém, 1974.

Estudos sobre o diálogo Filebo de Platão: A procura da eudaimonia/ Org. Hector Benoit. ─ Ijuí: Ed. Unijuí, 2007 (Coleção Filosofia;23)

Diálogo Filebo, versão original; ed. Burnet, 1903; disponibilizado na internet.




[1] Fundador da escola cirenaica e discípulo de Sócrates. Segundo Aristipo o télos da vida é o gozo do prazer imediato.
[2] Procedimento dialético utilizado para encontrar as articulações naturais do ser.
[3] Separação, divisão, distinção, discriminação.
[4] É uma palavra cognata de ei)=do/j.
[5] Artigo: O método da divisão e a divisão dos prazeres no Filebo de Platão.
[6] Grupo de mestres que ensinavam jovens abastados em troca de altas somas de dinheiro.
[7] Platão- Diálogos, Vol. VIII – Filebo, trad. Carlos Alberto Nunes, ed. UFPA.
[8] George Rudebusch – Artigo: O presente dos deuses e a divisão em quatro gêneros no Filebo de Platão.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A arte em Platão


INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto das aulas expositivas do professor Ramos Coelho na disciplina de Estética filosófica, tendo como fonte primordial uma de suas aulas de mesmo tema.
A arte em Platão ou a crítica que este faz àquela é um tema que vem sendo abordado desde longa data, tema este que suscitou críticas ferrenhas dos opositores do pensamento de Platão. Será uma contradição de Platão o fato de criticar, ao ponto de querer banir de sua cidade ideal os poetas (livros II, III, X da República), quando ele mesmo foi educado na leitura de Homero? E ele, Platão, não seria ao mesmo tempo crítico e alvo dessas mesmas críticas, tendo em vista que ele no passado fora um dramaturgo e então um filósofo poeta?
Tentarei abordar esses tópicos de maneira despretensiosa, buscando apenas me inteirar desse tema de grande importância para a compreensão deste, que é um dos maiores filósofos ou quem sabe o maior deles, a quem já atribuíram o título de divino e fonte de toda a filosofia ocidental, da qual as outras filosofias e sistemas são apenas notas de rodapé, Platão.





QUAL O LUGAR DA POESIA NA CIDADE IDEAL?

Dentre os diálogos platônicos aquele que aborda mais detidamente o tema das artes (poiésis) é A Politéia ou A República, embora não seja esse o seu assunto principal, e sim a justiça. De modo que suas personagens guiadas por Sócrates decidem ampliar a sua visão, deixando de procurar a justiça nos indivíduos para investigá-la em uma cidade idealizada por eles. Examinando cada aspecto da cidade eles se deparam em dado momento com a educação de seus cidadãos e em particular dos guardiões da cidade. Como se deveriam educar aqueles que defenderiam a cidade de seus inimigos? A educação tradicional daria conta da feitura do bom cidadão?
Nos livros II, III, X d’A República, Platão indica que os poetas tradicionais gregos, inclusive Homero, apesar do reconhecimento de sua genialidade por Platão, deveriam ser censurados em determinados aspectos, os quais seriam nocivos no que tangem a formação moral dos cidadãos da pólis.
Os mitos de cosmogonias e teogonias, produzidos pelos poetas, com suas narrativas plenas de conflitos entre deuses, muitas vezes causados pela volúpia, inveja e mentira das próprias divindades, infanticídios, parricídios, adultérios, enganos, dissimulações, praticados pelos deuses poderiam vir a dar credibilidade a tais ações imorais e ilegais. Ainda que se diga, em defesa dos mitos, que eles narram alegoricamente, devemos ter em vista que uma criança não tem ainda a sua racionalidade plenamente desenvolvida, de modo que ao ouvir essas histórias da boca de seus pais, poderiam vir a praticar, segundo o exemplo gravado em sua memória, dado a susceptibilidade das crianças, as mesmas atitudes execráveis em situações semelhantes. E ademais esses mitos são mentirosos, tendo em vista que não se deve atribuir aos deuses, que são de todo bons e perfeitos, atitudes como as descritas acima, e a mentira não deve fazer parte da educação das crianças.
Esse argumento de Platão se assemelha bastante a uma das opiniões da discussão vigente na atualidade a respeito dos jogos eletrônicos que incentivariam a violência ao apresentarem personagens que roubam carros, matam velhinhas e outros jogos em que o objetivo primordial é mutilar o adversário sem nenhum motivo aparente. Mas existem outros videogames que são educativos e até ajudam na formação das crianças, trabalhando a coordenação motora e a rapidez de raciocínio. E essa exceção que existe nessa discussão atual também existia no tempo de Platão quanto às artes. Mas antes de apresentar a exceção, ainda examinarei outros pontos da crítica platônica das artes.
Mais especificamente quanto aos guardiões da cidade ele adverte que não se deve estimular o temor exagerado da morte através de mitos e histórias contadas a respeito do hades ou do inferno, em que eles aparecem como lugares de tormento e punição, tendo em vista que o guardião ao enfrentar seus inimigos em batalha não deve temer a morte de modo mais intenso do que a derrota. E, além disso, não deprimir-se com a morte de um amigo, de modo a desistir da luta. O guardião deve ser corajoso e forte e, para tal, a sua educação não deve abarcar narrativas em que deuses aparecem se lamentando como o mais vil dos homens.
Portanto, na pólis, as artes devem ser condicionadas por tudo que é bom e justo, visando à formação de seus cidadãos. Essa abordagem de Platão não permite afirmar que ele dispensa as artes no seu ideal de cidade, mas somente aquelas que prejudicam uma boa educação. Os homens virtuosos não deveriam, pois, imitar em peças teatrais homens vis, nem loucos, nem qualquer espécie de obscenidade, não porque não poderiam, mas porque não quereriam. Esse é o lugar assegurado para a arte na pólis ideal. E tais críticas da parte de Platão às artes se concentram, num primeiro momento, no campo moral.


A ARTE É UMA CÓPIA DA CÓPIA.

No livro X d’A República Platão faz uma crítica não tão prática como a descrita no capítulo anterior, mas uma crítica que se funda na sua teoria das idéias ou hipótese inteligível. Antes de passarmos à crítica porei em breves palavras o que se entende correntemente a respeito da teoria das idéias.
Basicamente Platão afirma que há dois níveis de percepção: o nível do sensível e o nível do inteligível. O que conseguimos captar através dos sentidos é insuficiente para apreendermos algo, pois quando achamos que sabemos o que algo é, logo o vemos ser transformado pela força do devir e da corrupção e aquilo que captamos já não é mais o que era, e isso ocorre por um motivo: não captamos o que faz com que essa coisa seja o que ela é, a sua idéia. E só no nível do inteligível podemos conhecer satisfatoriamente todas as coisas, desfazendo-nos das sombras sensíveis e corruptíveis que tínhamos por verdadeiras. Assim, quando vemos uma cadeira, vemos algo que participa da idéia de cadeira e que faz com que qualquer cadeira que vemos seja uma cadeira, há várias cadeiras, mas somente uma idéia de cadeira da qual todas participam, a multiplicidade e a unidade, em que a primeira é corruptível e dada aos sentidos e a segunda é eterna, sempre a mesma, incorruptível e dada ao intelecto.
É a partir desse pensamento que Platão faz mais críticas a arte, visto que, ao considerar o criador das idéias (Deus), um criador de coisas perecíveis, por exemplo, um marceneiro que faz uma mesa, e por último, um pintor que também faz essa mesa de uma perspectiva específica, temos pois, três mesas: A MESA, a cópia dessa mesa e a cópia[1] da cópia da mesa. A mesa desenhada pelo pintor está três vezes distante da mesa ideal. A crítica está baseada na comparação entre ciência e arte, esta se encontra, pois, distante da verdade e por isso deve ser considerada inferior à ciência.


A APARENTE CONTRADIÇÃO.

Platão abomina o caráter mimético da arte, no referido caso de exemplo, mas também na poesia, no teatro e nas artes em geral.
Mas o que chama a atenção é que Platão fora um feitor de mímesis no passado[2] e no momento em que escreveu a República continuava sendo. Pois falava na boca de suas personagens como um verdadeiro poeta mimético e escrevia mitos como ninguém de seu tempo. Porque faria críticas a respeito de uma característica que ele mesmo compartilhava? O fato é que ele queria uma mudança paradigmática na educação dos gregos, queria introduzir o lógos calculador na educação dos cidadãos da pólis através do estilo novo que criara: o diálogo filosófico.
Mas será que todas essas críticas tinham por fundamento apenas seu desejo de introduzir-se como educador da Grécia no lugar de Homero? Não. Platão criticou a mímesis? Sim. Ele era mimético? Sim. Mas era o mesmo tipo de mímesis? Claro que não. Agora sim estamos no caminho certo. Esta passagem da República nos esclarecerá essa questão:


...mas, olhando e contemplando objetos ordenados e
que se mantêm sempre do mesmo modo, que não prejudicam
nem são prejudicados uns pelos outros, todos em ordem
(kósmoi) e comportando-se segundo a razão (lógon), é isso
que imitamos (mimeîsthaí) e a isso nos assemelhamos
(aphomoioûsthai) o mais possível (VI, 500b9-c6)[3].


Não são às cópias que Platão imita, mas as idéias perfeitas e imutáveis, esse tipo de arte é permitido e incentivado na cidade idealizada por Platão.


CONCLUSÃO



Platão fez primeiramente críticas de ordem ética e moral baseada no tipo de educação que ele almejava para sua cidade, posteriormente sustentou-se na sua teoria das idéias para fazer a sua crítica mais ferrenha, porém quando lemos A República pela primeira vez temos a impressão de que Platão é totalmente avesso a qualquer tipo de arte, o que se mostrou contraditório pelo fato dele mesmo aparentemente se encontrar inserido na classe de pessoas que ele critica, contradição que foi no mínimo esclarecida neste trabalho. Acredito que toda essa polêmica a que Platão esteve e está sujeito é justificada pelo seu desejo nostálgico de voltar a era de ouro dos sábios em que as palavras diziam exatamente o que as coisas são e a arte talvez estivesse isenta de culpa.




BIBLIOGRAFIA

Rogue, Christophe. Compreender Platão, tradução de Jaime A. Clasen. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
Platão. A República, tradução de Leonel Vallandro. Editora Globo, Porto Alegre-RG, 1964.

Periódico: cadernos uf5-filosofia, Platão e a crítica mimética a mímesis, Jovelina Maria Ramos de Souza. Departamento de Filosofia e Ciências Sociais do Estado do Pará.
[1] O termo utilizado por Platão é Mímesis e significa imagem, cópia, imitação.
[2] Platão antes de escrever diálogos filosóficos escrevia peças.
[3] Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.