quinta-feira, 18 de junho de 2009


A natureza e o mundo arendtianos

O mundo é produto da fabricação do homem, pois através de seus artifícios o homem cria uma barreira que se interpõe entre ele e a natureza. O homem fabrica seu próprio mundo para burlar o movimento circular e homogêneo da natureza em que os representantes das espécies surgem e desaparecem, pois os homens, diferente dos outros animais, não se resumem apenas ao seu funcionamento biológico animal, pois são animais políticos, que falam e que necessitam, portanto, instaurar um mundo que sirva de assunto entre eles, e, além disso, necessitam dar um caráter imortal ao mundo comum e humano que sirva de abrigo para receber os novos indivíduos mortais que nascem e que seja permanente ao contrário daqueles habitantes que seguiram em linha reta até a morte. Porém a natureza, ao contrário do mundo comum e humano, é inteiramente dada, é o pano de fundo em que os representantes das espécies animais surgem e desaparecem, desempenhando sempre aquilo que estavam programados bioquímicamente pela espécie num processo cíclico e homogêneo.


A fragilidade do mundo comum e humano

A fragilidade do mundo comum e humano não reside na espécie humana, nem no mundo enquanto abrigo dos homens, o qual é produzido pela fabricação, mas no mundo enquanto assunto dos homens ou no lado público do mundo. Pois ao contrário das obras humanas que tomam emprestado da natureza a sua matéria, a ação e a fala não têm um caráter estável. Pois a ação e a fala só permanecem durante o tempo em que são efetivadas, não são duráveis, de modo que, o lado público do mundo só existe na pluralidade humana, pois, quando os homens se dispersam, se isolam ou quando interrompem o agir e o falar, não há mais lado público do mundo. O agir e o falar necessitam de serem tornados reais e tangíveis, de serem reificados, para poderem ser lembrados pelas gerações futuras e o processo gerado por aqueles não seja perdido. Mas quando a ação e a fala são feitos produtos da fabricação, tal fabricação não tem o mesmo efeito sobre aqueles que o sentem depois do processo de reificação, do que sobre aqueles que estavam presentes no frágil momento em que homens plurais agiram e falaram. Além disso, a ação e a fala são imprevisíveis, pois resultam da liberdade humana, são irreversíveis, pois ocorrem linearmente no tempo, e seus autores são anônimos.

A solução grega para a fragilidade do "lado público do mundo"


A solução grega para a fragilidade do lado público do mundo foi instaurar um meio de “preservar a teia das relações humanas”, de modo que o agir e o falar não fossem interrompidos pelo isolamento ou dispersão humanos, ou seja, a pólis. Os gregos instituíram a ação e a fala como a mais importante atividade humana no momento em que distinguiram o lado privado do lado público do mundo, pois o lado privado, ou o lar, é o campo da necessidade, em que os homens agem meramente para satisfazer suas necessidades, impulsionados por suas animalidades, enquanto que no lado público os homens agem com liberdade e são vistos como detentores da virtude da coragem, sentem-se mais humanos e menos animais. Assim, desejosos de fama e glória, os gregos se lançam no lado público do mundo e o fortalecem.

Poder, força e autoridade

O poder tem sido confundido com a mera força violenta e coativa, pois é entendido na relação domínio-submissão, mas a força é exercida por um homem isolado, enquanto que o poder só é exercido entre homens em sua pluralidade e em condições de igualdade entre si, não compreendendo uma relação de mando e obediência, mas uma relação de consentimento às leis estabelecidas por eles mesmos, tal qual na tradição greco-romana. E é aqui que o conceito de autoridade se insere, uma vez que autoridade não é uma manifestação da força coativa para com os subordinados, mas é a capacidade de obter obediência sem o uso da violência ou persuasão, a autoridade é consentida por quem obedece, pois foram os homens plurais e em igualdade que estabeleceram, através do acordo entre os homens que se encontra na potencialidade do agir e falar, quem e o que deveria exercer autoridade. De modo que aquele que renuncia o lado público do mundo, renuncia ao poder, pois o poder funda a convivência entre os homens e a preserva.

A solução platônica para as calamidades da ação

As calamidades da ação são: a imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores. E a solução platônica para esses problemas começa a se configurar quando da morte de Sócrates, a qual patenteou o declínio gritante que a polis vinha sofrendo desde a guerra do peloponeso, e que definitivamente desiludiu o filósofo em relação à política. Num momento em que a ação e a fala visavam somente interesses próprios, e só interessava a conveniência do mais forte, uma vez que se poderia dizer tudo sobre qualquer coisa e defender pontos de vista opostos com a mesma persuasão, aparece com Platão a primeira perspectiva filosófica com relação à política: não há necessidade da pluralidade humana, pois nossas ações devem ser guiadas pela razão, basta nos concentrarmos na contemplação para conhecermos o ser e agir segundo esse conhecimento dado pela razão, pois não há necessidade de se arriscar se lançando no lado público do mundo em ações temerárias, imprevisíveis e irreversíveis.