Para quem estiver interessado nas minhas pesquisas anteriores, aí vai o link para baixar minha monografia. Arrependo-me de algumas coisas, sinto vergonha de outras, mas me sinto satisfeito com o resultado que obtive naquele tempo.
http://www.4shared.com/office/Oyot49DT/MONOGRAFIA.html
ataraxía da alma
Meus escritos sobre filosofia
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
O simulacro segundo Baudrillard
Renato
dos Santos Barbosa
Utilizando a imagem da cartografia,
tomada de empréstimo a Borges em seu minúsculo conto intitulado “Do rigor da ciência”[1],
J. Baudrillard enseja a definição do conceito de simulacro. O simulacro de
Baudrillard já não tem a ver com o falso, enganoso ou meramente aparente em
detrimento de uma instância verdadeira, real e substancial. O real e verdadeiro
já não podem mais ser objeto de emulação porque já não há “real” e
“verdadeiro”. Diferente da imagem do grande mapa que cobria toda a extensão do
império, sendo uma representação perfeita do território real, o simulacro, por
sua vez, não representa nada, pois não há nada por trás do simulacro.
Hoje a abstração já não é a do
mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. A simulação já não é a simulação de
um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos
modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não
precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território –
precessão dos simulacros – é ele que engendra os territórios cujos fragmentos
apodrecem sobre a extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem
aqui e ali, nos desertos que já não são os do império, mas o nosso. O deserto
do próprio real. (BAUDRILLARD, 1991, p.8)
O
simulacro precede o real e não o contrário. Mudança significativa em relação
aos pensadores metafísicos que, diante de um mundo de aparências e
multiplicidade, buscavam a verdade e a unidade escondida sob uma torrente de
simulacros atordoantes. Para este exemplo basta citar o nome de Platão que,
inclusive no seu diálogo a República,
mapeou no pensamento a cidade ideal, portanto, verdadeira e real que se
escondia sob o simulacro fantasmagórico da cidade que lhe aparecia aos
sentidos.
Simular não é fingir ou
dissimular, pois estes últimos preservam a sua diferença em relação ao real,
enquanto o primeiro dissolve a diferenciação entre real e irreal, verdadeiro e
falso. “Logo fingir, ou dissimular,
deixam intacto o princípio de realidade: a diferença continua a ser clara, está
apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do
‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’” (Ibidem, p.
9-10). A simulação e o simulacro, portanto, produzem uma substituição do real,
em que estava implicada a diferença entre verdadeiro e falso, pelo hiper-real.
Um doente que simula os sintomas de uma doença não está doente? Como se
comporta a medicina diante de simulações de doença que geram sintomas tais
quais as doenças “verdadeiras”? Não há o que fazer, senão, combatê-las como
verdadeiras doenças. Na hiper-realidade o simulado é tratado como tudo mais. A
simulação de um assalto ou sequestro gera as mesmas consequências de um evento
dito “real”: a ação da polícia, reações de pânico e etc.
Baudrillard exemplifica
o poder do simulacro com a ojeriza do Deus judaico às imagens. Era vetada toda
e qualquer tentativa de forjar imagens que representassem a divindade. E por
quê? Porque os simulacros divinos terminariam por denunciar que não estavam
representando nada, que não havia divindade alguma por trás das imagens. “Mas o seu desespero metafísico (o da
religião) provinha da ideia de que as imagens não escondiam absolutamente nada
e de que, em suma, não eram imagens, mas, de fato simulacros perfeitos, para
sempre radiantes no seu fascínio próprio”. (Ibidem, p. 11). O
filósofo francês elenca, assim, as fases pelas quais passa as imagens e o
simulacros: primeiro ela mascara uma realidade profunda; depois ela deforma uma
realidade profunda; mais tarde ela dissimula a ausência de uma realidade
profunda e, por fim, ele não tem qualquer relação com a realidade, ela é seu
próprio simulacro puro. É nesta última fase que nos encontramos.
Vivemos numa teia de simulacros que
incluem, também, simulacros de terceira categoria. Assim como os iconólatras
estavam conscientes de que as imagens nada representavam e, no entanto,
defendiam-se dos iconoclastas para garantir a manutenção do “real”, assim o
poder injeta grandes quantidades de realidade na população (Cf. Ibidem, p. 32) através de simulacros de terceira categoria, na tentativa de
manter o mundo em “ordem”. O que é a Disneylândia, senão, um mundo “imaginário”
que faz com que ao sair de lá nos convençamos que estamos voltando para o mundo
real? O problema disso é que o mundo real é tão real quanto a Disneylândia.
Ambos não passam de simulacros.
No entanto, como viver segundo esta
ontologia dos simulacros? A verdade já não importa e somos conscientes de que
nada há por trás dos simulacros. Devemos fazer de conta de que é real assim
como os iconólatras? Ou, por outro lado, devemos ser iconoclastas que nada
podem repor no lugar das imagens, a não ser outras imagens? A possibilidade do
diverso, da pluralidade de formas de se viver surge como aspecto positivo da
consciência da hiper-realidade. Isso permite a autonomia total dos homens
enquanto doadores de sentido e criadores de seu mundo. No entanto, a falta de
sentido momentânea que se estabelece entre o momento pós-destruição das velhas
imagens, deixa-nos aturdidos e angustiados.
Bibliografia
BAUDRILLARD,
J. Simulacros e simulação. Trad.
Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’água, 1991.
[1] Naquele
Império, a Arte da Cartografia logrou tal perfeição que o mapa de uma única
Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com
o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia
pontualmente com ele. Menos Adictas ao Estudo da Cartografia, as Gerações
Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o
entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste
perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em
todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Cartográficas. (Jorge
Luis Borges, História Universal da Infâmia, 1935. Disponível em: <http://www.alfredo-braga.pro.br/discussoes/rigor.html>).
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
Ceticismo: epoché e modo de vida
Renato
dos Santos Barbosa
Resumo:
O ceticismo, por vezes, é alvo de críticas grosseiras decorrentes de uma má
compreensão de seus princípios e finalidades. Além disso, a epoché (suspensão do juízo), ao longo da
história, foi tomada como característica primordial do ceticismo, ao passo que
a ataraxía (tranquilidade) ficou,
inapropriadamente, à margem das explicações da natureza do ceticismo. Com base
nas explicações de V. Brochard e P. Hadot se pode observar que a epoché se submete, antes de tudo, à obtenção
de certo modo de vida. Estas explicações
partem, sobretudo, dos testemunhos a respeito de Pírro de Élis (365 a.c), tido
por alguns como fundador da filosofia cética, denominada, então, de ceticismo
pirrônico ou pirronismo.
Palavras-chave:
Ceticismo, Suspensão do juízo, Tranquilidade, Modo de vida.
São conhecidas as histórias, um tanto
pitorescas, sobre a vida de Pírron[1].
Conta-se que nada o desviava de sua rota, fossem carruagens ou precipícios, mas
que continuava placidamente seu caminho como se nada existisse. Conta-se ainda
que vendo seu mestre Anaxárcos caído em um pântano não o ajudou, ao passo que
seu mestre elogiou sua indiferença[2]. Estes
relatos se prestam a exaltar a indiferença (adiaforia)
e a tranquilidade (ataraxía) de
Pírron e a traçar os contornos dessa que foi uma das personalidades mais marcantes
da filosofia helenística. No entanto, tais relatos também podem contribuir para
a má compreensão do que foi o ceticismo pirrônico e de quem foi a própria
figura de Pírron. Pois baseados nessas narrativas, os opositores do ceticismo
acusaram-no de promover a apraxia, pois não se poderia viver e agir segundo os
moldes do discurso cético[3]. Some-se
a isso o problema de terem colocado em segundo plano o próprio fim do
ceticismo, o resultado da suspensão do juízo: a tranquilidade e a indiferença,
e, então, teremos todos os motivos para criticá-lo. Porém, o argumento dos dogmáticos só se
estabelece por desconsiderar que “como a de Sócrates, como a dos cínicos, a
filosofia de Pírron é, antes de tudo, uma filosofia vivida, um exercício de
transformação do modo de vida”. (HADOT, 2004, p. 169). Para tratarmos desses
assuntos é preciso compreender os princípios e finalidades do ceticismo. Para
tanto utilizaremos o livro I das Hipotiposes
Pirrônicas (HP) de Sexto Empírico e o livro IX das Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres de Diôgenes Laêrtios (DL).
Epoché: a suspensão do juízo
Sexto Empírico afirma que a epoché “é um estado mental de repouso no
qual não afirmamos nem negamos nada” (HP,
I, 10).
Este estado mental decorre da aplicação do princípio básico do ceticismo, qual
seja: o de “opor a cada explicação uma outra equivalente (HP, I, 6
)[4]”.
Diante das múltiplas explicações dos fenômenos o cético prefere abster-se de
proferir juízos, uma vez que as controvérsias são produzidas por argumentos e
discursos equipolentes. De acordo com Brochard,
a razão aduzida por Pirro é que “sempre podem ser
invocados argumentos de força igual a favor e contra cada opinião (antilogía). O melhor é, pois, não tomar
partido, confessar que não se sabe nada (akatalepsía);
não inclinar-se para nenhum lado; permanecer em suspensão (epoché)” (BROCHARD, s.d, p. 5)[5]. No entanto, a epoché não é um fim em sim mesma. Por trás da abnegação de proferir
juízos sobre os fenômenos repousa o desejo de se manter tranquilo (ataraxía). Diante de fenômenos cuja
explicação é controversa, resta-nos, apenas, desvencilhar-nos de qualquer
disputa sobre eles. O cético vive tranquilo porque não se preocupa com questões
insolúveis, nem acha que encontrou a verdade no mito, na filosofia ou em
qualquer outro segmento do saber que julga explicar a realidade. Por
isso nos diz Sexto que “o princípio causal do ceticismo é a esperança de se
tornar tranquilo” (HP, 1, 12).
“Cansado das discussões eternas em que se comprazem seus contemporâneos,”
comenta Brochard, “Pírron toma o partido de responder a todas as perguntas:
‘não sei nada’” (BROCHARD, s.d, p. 12).
Ataraxía: a tranquilidade da alma
Podemos traduzir o
termo grego ataraxía por
tranquilidade ou imperturbabilidade. Segundo Sexto Empírico, “ataraxía é a ausência de perturbação ou
a calma da alma” (HP, 1,
10). A
tranquilidade seria a finalidade do ceticismo na interpretação de Sexto. É para
alcança-la que o cético suspende o juízo, a epoché
não pode, portanto, ser pensada sem a ataraxía.
No entanto, segundo o relato de Diôgenes Laêrtios, “O
fim supremo para os céticos é a suspensão do juízo, à qual se segue a
impertubabilidade como se fosse uma sombra, como dizem Tímon e Ainesídemos e
seus adeptos (de Pírron)” (DL, IX, 107). Por outro lado, Sexto parece criticar
a posição apresentada por Diôgenes Laêrtios, desde que reforça a definição de
finalidade (télos): “é aquilo visando
o que todas as ações e raciocínios são realizados, enquanto que ela própria não
existe com nenhum outro objetivo” (HP,
1, 25). O fim supremo, portanto, não admite nada que se lhe siga nem mesmo que
seja “como uma sombra”. Assim, a finalidade do ceticismo não pode ser outra
coisa senão a ataraxía. Eis o que diz
Sexto:
Dizemos ainda que a finalidade do
cético é a tranqüilidade em questões de opinião e a sensação moderada quanto ao
inevitável. Pois o cético, tendo começado a filosofar com o objetivo de decidir
acerca da verdade ou falsidade das impressões sensíveis de modo a alcançar com
isso a tranqüilidade, encontrou-se diante da eqüipolência nas controvérsias, e
sem poder decidir sobre isto, adotou a suspensão, e, em conseqüência da
suspensão seguiu-se, como que fortuitamente, a tranqüilidade em relação às
questões de opinião. Pois aqueles que mantêm uma opinião sobre se algo é por
natureza bom ou mau estão sempre perturbados. Quando se encontram privados
daquilo que consideram bom, sentem-se afligidos por algo naturalmente mau e
passam a buscar aquilo que pensam ser bom. E ao obter isso sentem-se ainda mais
perturbados, já que ficam contentes de forma irracional e imoderada e passam a
recear que as coisas mudem e percam aquilo que pensam ser bom. Mas, ao
contrário, aqueles que não determinam serem as coisas naturalmente boas ou más,
não as evitam nem as buscam avidamente, e, por isso, não se perturbam. (HP, 1, 26-27)
Podemos
observar, através dessa leitura, que o ceticismo tem uma finalidade ética, um
discurso que anuncia um modo de vida pelo qual se pode obter a tranquilidade e
a paz da alma. “A filosofia cética, isto é, o modo de vida, a escolha de vida
dos céticos, é a da paz, da tranquilidade da alma” (HADOT, 2004, p. 209).
Improcedência
das críticas dos dogmáticos
Diôgenes Laêrtios nos informa que os
dogmáticos acusavam os céticos de promover a apraxia, uma vez que, não defender
uma opinião sobre os fenômenos, nos impossibilitaria de realizar qualquer
atividade cotidiana, como comer, andar, produzir etc. “Além disso os dogmáticos
dizem que os céticos suprimem a própria vida, pois rejeitam tudo que compõe a
vida” (DL, IX, 103). Porém existem interpretações diferentes a respeito do
ceticismo. O próprio Diôgenes Laêrtios veicula a opinião de um dos discípulos
de Pírron chamado Ainesídemos dizendo: “Ainesidemos, entretanto, afirma que na
filosofia Pírron aplicava o princípio da suspensão do juízo, porém na vida
cotidiana não lhe faltava a precaução. (DL, X, 62). Isso significa que, embora
duvidasse e consequentemente suspendesse o juízo a respeito dos fenômenos de
explicações conflitantes, o cético não deixa de viver e realizar suas
atividades corriqueiras. Como diz Brochard:
É importante
assinalar que a dúvida cética não diz respeito às aparências ou fenômenos (fainómena) que são evidentes (enargé), mas unicamente às coisas
obscuras ou ocultas (ádela). Nenhum
cético duvida de seu próprio pensamento. O cético reconhece que é dia, que ele
vive, que vê claramente. Não contesta que tal objeto lhe parece branco, que o
mel lhe parece doce (BROCHARD, sd. p. 5).
O
cético não duvida que os fenômenos o afetem. Ele sente sabores, odores, sons e
vê imagens, no entanto, não sabe o que essas coisas são.
Aqueles que afirmam que o cético
rejeita o aparente não prestaram atenção ao que dissemos. Pois, como dissemos
antes, não rejeitamos as impressões sensíveis que nos levam ao assentimento
involuntário e estas impressões são o
aparente. E quando investigamos se as coisas na realidade são como parecem ser,
aceitamos o fato de que aparecem e o que investigamos não diz respeito à
aparência, mas à explicação da aparência, e isto é diferente de uma
investigação sobre o aparente ele próprio (HP,
1, 19).
Que
há aparências, no sentido de que há coisas que nos afetam, nunca foi posto em
dúvida pelo ceticismo pirrônico. Ao comer mel o cético sente a doçura, mas será
que de fato o mel é doce assim como o sentimos? Esse é o motivo pelo qual o
cético não afirma que o mel é doce, amargo ou salgado. “Ele se limitará, em
todas as coisas, a descrever o que experimenta, o que lhe aparece, sem nada
acrescentar ao que são ou ao que valem as coisas; contentando-se em descrever a
representação sensível que é a sua e em enunciar o estado de sua sensibilidade,
sem a ela acrescentar o seu parecer”. (HADOT, 2004, p. 212) É uma má
interpretação pensar que o ceticismo renuncia a própria vida por causa da epoché. Antes, a suspensão do juízo se
põe em função da vida. “Na prática, o sábio deve
viver como todo mundo, conformando-se às leis, aos costumes, à religião de seu
país” (BROCHARD, sd. p. 8).
Conclusão
O ceticismo não se contradiz
quando se levanta a questão do modo de vida, a saber: como viver ao modo cético
se a suspensão do juízo decorre de seus princípios básicos? Ou melhor, como
viver sem emitir juízos sobre os fenômenos? Mas, como vimos, o ceticismo tem
seu ponto de partida na consideração de um modo de vida específico. Para
atingi-lo é necessário suspender o juízo em relação às explicações dadas sobre
o mundo fenomênico. Nausífanes discípulo de Pírron dizia que “na
disposição espiritual devemos seguir Pírron, mas devemos seguir-nos em questões
de doutrina” (DL, IX, 64). Isso aponta para a admiração que os gregos sentiam
por Pírron, não tanto pelo seu discurso, mas pelo modo de vida que escolheu. No
ceticismo antigo existia uma proeminência da transmissão de um modo de viver em
relação ao discurso dito filosófico (ou teórico). Lembrando as palavras de
Brochard: “Pirro talvez tivesse sorrido e mostrado alguma compaixão, se tivesse
visto Sexto Empírico fazer tanto esforço para reunir em duas e intermináveis e
indigestas obras todos os argumentos céticos” (BROCHARD, sd. p. 20). Sem dúvida
uma vida tranquila, sem perturbações e temores, era o alvo de Pírron e seus
discípulos.
Bibliografia
BROCHARD,
V. Pirro e o ceticismo primitivo.
Trad. Jaimir Conte. Disponível Em: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-brochard-pirro.pdf. Acesso em: 22
novembro 2012)
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos
filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1988
HADOT,
P. O que é filosofia antiga? Trad. Dion
Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines
of scepticism. Edited by J. Annas and J. Barnnes. New
York: 2007.
SEXTO
EMPÍRICO. Hipotiposes Pirrônicas, livro I.
Trad. Danilo Marcondes. O que nos faz
pensar nº 12. Rio de Janeiro: setembro 1997.
[1]
Aproximadamente 360-270 a.C
[2]
Cf. DL, IX, 62; 68
[3]
“Além disso os dogmáticos dizem que os céticos suprimem a própria vida, pois
rejeitam tudo que compõe a vida” (DL, IX, 103).
[4] DL,
IX, 75: “Não mais uma coisa que outra”.
[5]
Trad. Jaimir Conte. Disponível Em: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-brochard-pirro.pdf. Acesso em: 22
novembro 2012); Título original: “Pyrrhon et le scepticisme primitif”. Artigo publicado na Revue philosophique de
la France et de l’Étranger, Ano 6, 1885, p. 517-532.
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terça-feira, 20 de novembro de 2012
FUTURO, DESTINO E NECESSIDADE: JARDIM E LICEU CONTRA OS MEGÁRICOS
Renato dos Santos Barbosa
Resumo: Afirmar que o
futuro está determinado é negar, consequentemente, o poder de escolha e decisão
dos homens. Esse é o motivo da crítica de Epicuro aos megáricos e a toda forma
de discurso que anuncie a onipotência da necessidade. Aristóteles em seu Sobre
a interpretação e Epicuro nos poucos textos de que dispomos criticam a opinião
do megárico Diodoro Cronos de acordo com o que consta no Sobre o destino de
Cícero.
Palavras-chave:
Futuro, necessidade, Epicuro, Aristóteles, Diodoro.
Dentre as advertências iniciais de
Epicuro ao seu discípulo Meneceu há uma que merece atenção especial por ser
muito pontual e facilmente passar despercebida pelo leitor. Trata-se da
compreensão epicurista dos eventos futuros. Diz Epicuro: “Devemos lembrar-nos
de que o futuro não é inteiramente nosso, de tal maneira que não devemos
esperar a sua realização de qualquer modo, nem que não se realize de modo algum”
(DL, X, 123). A despeito do fator terapêutico indiscutível que essa visão
produz, na medida em que nos torna mais atentos ao presente e ao que depende de
nós, é preciso destacar a relação existente entre esta advertência de Epicuro e
as opiniões que circulavam em sua época. Nomeadamente, não podemos falar desse
assunto sem trazer à baila as opiniões de Aristóteles no Sobre a interpretação e as de Diodoro Cronos[1]
veiculada através do Sobre o Destino
de Cícero.
Esperar que tal ou tal coisa aconteça no
futuro tem a ver com a possibilidade de predicação de verdadeiro ou falso em
relação à proposições sobre eventos futuros. Afirmar, opostamente à Epicuro,
que o futuro já está determinado[2],
valendo-se do princípio de contradição, coloca-nos junto à opinião de Diodoro
Cronos. Por outro lado, afirmar que não podemos predicar verdade ou falsidade
de eventos futuros nos coloca na esteira das opiniões de Aristóteles e Epicuro.
Comecemos, portanto, com a perspectiva epicurista.
Antes de tudo, para o Mestre do jardim,
somos livres e, portanto, detentores do poder de escolha e deliberação. Sem
isso não haveria motivo para a filosofia nem para o aperfeiçoamento ético do
homem. Por isso qualquer discurso que, para a sua aceitação, pressuponha a
ausência da liberdade humana deve ser prontamente rejeitado. Antes um relato
mitológico que um pretenso saber que nos faz apáticos. Diz Epicuro:
Seria melhor, realmente, aceitar
os mitos sobre os deuses do que aceitar ser o escravo do destino adotado pelos
filósofos naturalistas, pois os mitos têm como se fosse impressa em si mesmos a
esperança de que os deuses podem ceder às preces e homenagens que lhe são
prestadas, enquanto o destino dos filósofos naturalistas é uma necessidade
inflexível. (DL, X, 134)
Quais
seriam a filosofia e os filósofos que Epicuro acusa? Segundo Salem, “Não é
impossível pensar, num primeiro momento pelo menos, no necessitarismo absoluto de Diodoro Cronos, O Megárico”(SALEM, 1998,
p. 63). Ademais, constava no corpus
epicureum, segundo nos conta Diôgenes Laêrtios, um escrito intitulado Contra os Megáricos (DL, X, 27). Infelizmente
as intempéries históricas nos impediram o acesso à maioria dos textos de
Epicuro; e com este texto em particular não foi diferente. Em todo caso, o que
Epicuro criticava na filosofia da escola de Mégara e, sobretudo, no discurso de
Diodoro Cronos?
Cícero nos conta em seu texto Sobre o Destino a opinião de Diodoro:
Agrada então a Diodoro somente
poder acontecer aquilo que ou seja verdadeiro ou haja de ser verdadeiro. Esse
ponto atinge esta questão: nada que não haja sido necessário acontece, e, tudo
o que possa acontecer, isso ou já é ou haverá de ser; e não mais podem ser
alteradas de verdadeiras em falsas estas coisas que haverão de ser, tanto
quanto aquelas que foram feitas. Mas a imutabilidade nos fatos passados é
evidente. (De Fato, IX, 17)[3]
Olhando
para o passado, Diodoro identifica o impossível com o falso, de modo que o que
aconteceu necessariamente deveria ter acontecido. Assim, projetando essa
necessidade para o futuro, pensa que como o impossível não deixa de ser
impossível, no futuro só o possível acontecerá, ou seja, apenas as proposições
verdadeiras acontecerão, enquanto as falsas permanecerão impossíveis. Em outras
palavras, o futuro já está determinado de antemão. Diodoro, desse modo, estende
a necessidade lógica[4] às
ações humanas, transformando-a num destino inflexível.
Contra esse modelo de discurso nos
restaram algumas passagens de Epicuro das quais elegemos aqui uma das mais
significativas de seu pensamento:
Aquele que diz que
tudo acontece por necessidade não tem nada a reprovar àquele que diz que tudo
não acontece por necessidade, porque diz que isso mesmo[5]
acontece por necessidade (SV, 40).
Ora, por qual motivo o partidário do necessitarismo[6]
discutiria com seu opositor? A menos que acreditasse poder demover o seu
interlocutor de sua opinião não deveria apregoar o domínio da necessidade, pois
se a oposição existe, ela também deveria ser necessária e inamovível. Assim, o
defensor da onipotência da necessidade entra em contradição com seus atos, produzindo
apenas uma verbosidade vã. A opinião de Epicuro está fundamentada nas nossas
experiências de escolhas e da subsequente responsabilidade que resulta delas:
(...)
a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso é inconstante, e as
coisas que dependem de nós são livremente escolhidas e são naturalmente
acompanhadas de censura e louvor. (DL, X, 133)
A
partir dessa evidência, a saber, que há um espaço de ação que concerne apenas
ao homem e suas escolhas (par’hemás),
Epicuro explica sua posição no âmbito da physiología
(investigação da natureza)[7]. Epicuro
pensa, como nos conta Cícero, “que há diferenças entre causas fortuitamente
anteriores e causas que encerram em si uma eficiência natural” (De Fato, IX, 19). Ou seja, o acaso
também está presente na cosmologia epicurista, de modo que nem tudo acontece
por necessidade, e é justamente o acaso que quebra as cadeias causais da
necessidade e abre as portas para o espaço de ação livre e calculada dos homens.
Assim, os eventos futuros não podem ser
nem verdadeiros nem falsos, pois, em primeiro lugar isso geraria uma
necessidade inflexível, consequência que é contraditada pela experiência humana
e em segundo lugar, como nos mostrará Aristóteles, só podemos predicar
verdadeiro ou falso de uma proposição quando o acontecimento a que elas se
referem estiver atualizado.
Aristóteles pensa da mesma maneira que
Epicuro no que concerne às consequências de predicar verdade ou falsidade de
proposições sobre o futuro. No Sobre o
Destino Epicuro, segundo Cícero, diz que “(...) aqueles que dizem ser
imutáveis as coisas que estejam para existir, e não poder o verdadeiro futuro
converter-se em falso, não confirmam a necessidade do destino, mas só
interpretam o sentido das palavras”. (De
Fato. IX, 20) Além
disso, acreditamos que Aristóteles diria que os Megáricos interpretaram mal os sentidos
das palavras. Assim
como Epicuro, Aristóteles, antes dele, já tinha como evidente a nossa
capacidade de escolha e deliberação e também conhecia os riscos dos discursos
da necessidade: “Não podemos sustentar, todavia, que nem uma nem outra proposição
seja verdadeira. Por exemplo, não podemos sustentar que um certo evento se
realizará nem que não se realizará no futuro”, pois, se fosse possível, tudo
estaria determinado necessariamente e “Não haveria necessidade de deliberar ou
ter cuidados se conjeturássemos que uma vez adotada uma particular linha de
conduta, um certo resultado se seguiria e que, se não o fizéssemos, não se
seguiria”(Arist. De inter. IX, 18b1,
16-20 e 30-35)[8].
Após constatar a influência do elemento
humano na realização do futuro, Aristóteles pensa que o futuro não pode estar
determinado, uma vez que o que é possível está aberto à contingência. Aristóteles exemplifica com o clássico
exemplo da batalha naval:
Por exemplo, uma
batalha naval amanhã necessariamente ocorrerá ou amanhã não ocorrerá uma
batalha naval. E assim, como a verdade das proposições consiste na
correspondência com os fatos, fica claro, no caso de eventos nos quais se
encontra contingência ou potencialidade em sentidos opostos, que as duas
proposições contraditórias tem o mesmo caráter. (Arist. De inter. IX, 19 a,
30-35)
Potencialmente
a batalha naval poderia ocorrer ou não ocorrer amanhã, pois o que está em
potência admite o ser e o não ser sem, no entanto, ferir o princípio de não
contradição. A verdade de uma proposição depende, pois, de sua adequação ao
fato, atualizado ou realizado que ela descreve. Enquanto falarmos de
potencialidade, estaremos considerando que o futuro está aberto às contingências.
Portanto,
tanto Aristóteles como Epicuro rejeitam a possibilidade de predicar verdade ou
falsidade sobre o porvir, negando o destino e o domínio absoluto da
necessidade. O futuro não está totalmente sob o nosso domínio, mas também não
independe de nossas escolhas. Existe acaso, necessidade, mas também existe o
que nos concerne. Aceitar a opinião de Diodoro é aceitar a apraxia, é saber e
admitir que nossas ações não fazem diferença no mundo.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Órganon. Trad. Edson Bini. Bauru -SP: EDIPRO, 2010.
CÍCERO. Sobre o destino. Trad. José Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Órganon. Trad. Edson Bini. Bauru -SP: EDIPRO, 2010.
CÍCERO. Sobre o destino. Trad. José Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.
DIÔGENES
LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama
Kury. Brasília: UNB, 1988.
HADOT,
P. O que é filosofia antiga? Trad.
Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
MOREL, P.-M. Atome
et nécessité : Démocrite, Épicure, Lucrèce. Paris : Presses
Universitaires de France, 2000.
SALEM, J. Démocrite,
Épicure, Lucrèce : la vérité du minuscule : Encre Marine, 1998.
[1] Filósofo da escola de Mégara
(século IV a.C)
[2] Deste ponto já podemos notar que
o assunto se une a outro também muito controverso: o tema do destino.
[3] Para esta obra
utilizamos: CÍCERO. Sobre o destino.
Trad. José Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.
[4] Morel (2000 p.12) afirma sobre a
necessidade que: “Nós podemos distinguir três (sentidos) gerais: a necessidade
como princípio lógico, como princípio cosmológico e como destino”.
[5] “O fato de dizer que tudo não
acontece por necessidade”, explicação de Conche (1977, p. 257).
[6] Para utilizar o termo de Salem
(1998, p. 63)
[7] Pode nos parecer estranho que a
fundamentação física venha depois da constatação de como vivemos e nos
portamos, no entanto, segundo nos diz Hadot (1999), essa era a forma em que se
processava a filosofia dos gregos, uma vez que a justificativa filosófica viria
depois da escolha do modo de vida: “(...)Essa opção existencial implica, por
seu turno, certa visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico revelar e
justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa representação
do mundo. O discurso filosófico teórico nasce dessa opção existencial inicial e
reconduz, à medida do possível ou por sua lógica persuasiva, à ação que quer
exercer sobre o interlocutor; ele incita mestres e discípulos a viver realmente
em conformidade com sua escolha inicial ou, ainda, conduz de alguma maneira à
aplicação de um ideal de vida” (HADOT, 1999, p. 18)
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terça-feira, 31 de julho de 2012
O aprimoramento moral genético e seus problemas
Neste trabalho abordaremos os problemas
suscitados pelas afirmações de Halley S. Faust acerca do aprimoramento genético
para a moralidade. Em seu artigo intitulado “Should we select for genetic moral enhancement? A thought experiment
using the MoralKinder (MK+) haplotype”, H. S. Faust argumenta em favor da
obrigatoriedade do aprimoramento moral genético.
Antecipando um mundo em que a ciência se
tornou capaz de realizar aprimoramentos genéticos com maestria, inclusive aquele
para a moralidade, H. S. Faust supõe que tal procedimento não é apenas
permissível e desejável, mas obrigatório. Entretanto, essa afirmação é delicada
e polêmica, pois mobiliza uma variedade de assuntos que giram em torno do
aprimoramento genético.
Não nos deteremos nas questões relativas
à pessoalidade do embrião ou se é moralmente aceitável que embriões humanos
sejam usados e descartados em pesquisas genéticas, porém nos debruçaremos sobre
as possíveis consequências de um aprimoramento moral genético sobre a vida de
pessoas submetidas a essa modificação, suas implicações na sociedade e etc.
Utilizaremos o argumento de que a auto-compreensão
de ser modificado geneticamente poderia trazer problemas a empreitada dos que
defendem o aprimoramento genético e na esteira de Habermas apresentaremos
algumas críticas ao texto de Faust.
Defendemos que, embora não deva ser
proibido, o aprimoramento moral genético deve ser permitido, porém com algumas
ressalvas. A obrigatoriedade do aprimoramento é tão absurda quanto a sua
proibição. A despeito de o tema ter implicações políticas claras não nos
deteremos nesses pontos. O que nos move
aqui, depois de examinar as afirmações de Faust, são as questões: é prudente
selecionar geneticamente para a moralidade? Ou, podemos, efetivamente, levar a
cabo a intenção de aprimoramento ético universal por meios de intervenções
genéticas? Ou ainda, é desejável tal procedimento?
1.
A
auto-compreensão de ser modificado
sem consentimento
H. S. Faust afirma que a seleção
genética de embriões com o grupo de genes que favorece a moralidade (chamado
por ele de MK+) é desejável porque propicia um número maior de ações morais na
sociedade. Faust demonstra com um exemplo corriqueiro como o haplótipo MK+ funcionaria
no momento em que surgisse a necessidade de uma ação moral: Uma criança MK+ é
pressionada para roubar uma farmácia e supostamente decide não roubar 90% das
vezes em que essa ação lhe é proposta. Número impressionante que Faust se
apressa em explicar, dizendo que não se trata, no entanto, de uma determinação genética.
A criança MK+ continua livre para agir, inclusive, imoralmente. O grupo de
genes apenas predispõe seu detentor para a moralidade. “This is how haplotypes work. He will still have freedom
to choose his course of action” (FAUST, 2009, p. 400).
Entretanto, o que nos chama a atenção
são as possíveis justificativas da criança para a ação moral alegadas pelo
autor: simplesmente poderia dizer que não rouba porque é errado ou porque tem
medo da punição. Sentimos, nesse ponto, a ausência de outra justificativa da
criança: não roubo porque fui modificado antes de nascer. Parece que nosso
autor quer ignorar ou esconder a influência que o conhecimento de ser
modificado geneticamente tem sobre a vida do indivíduo modificado. Não devemos
nos preocupar tanto em saber como funciona o haplótipo da moralidade, porém,
devemos investigar as possíveis influências psicológicas da auto-compreensão de alguém como
modificado sem o seu consentimento.
As palavras de Habermas podem ser muito
esclarecedoras para o entendimento do assunto em questão:
Independentemente da extensão com
que uma programação genética realmente estabelece as qualidades, as disposições
e as capacidades da futura pessoa e determina seu comportamento, é o
conhecimento posterior que essa pessoa toma da situação que poderia intervir na
sua auto-relação com sua existência corporal e psíquica. (HABERMAS, 2004, p.74-75)
Não adianta tentar garantir o modo de
funcionamento dos grupos de genes MK+, pois o modo como as pessoas reagiriam ao
saber que são modificadas e que não participaram dessa decisão pode ser
inteiramente inesperado e o inverso do almejado pelos defensores do
aprimoramento moral genético. Consequências indesejáveis poderiam advir da
ideia de seres aprimorados geneticamente para a moralidade. Por exemplo, por
mais que os pais saibam como funciona o MK+ e suas características, o simples
fato de saber que seus filhos foram modificados geneticamente para a moralidade
pode gerar um certo descuido em relação a sua educação moral, fato que
invalidaria todo o processo de aprimoramento. Por outro lado, a falta de
consentimento dos filhos para o procedimento genético geraria uma relação
assimétrica, ou seja, não estaríamos nos relacionando com seres iguais a nós,
mas com pessoas que interviram diretamente, sem o nosso consentimento, na
história de nossa vida.
As intervenções eugênicas de
aperfeiçoamento prejudicam a liberdade ética na medida em que submetem a pessoa
em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são
irreversíveis, impedindo-a de se compreender livremente como o autor único de
sua própria vida. (HABERMAS, 2004, p.88)
A despeito desses problemas Faust
prossegue seu artigo afirmando que a pessoa MK+ tem uma percepção mais aguda de
uma dada circunstância e consegue fazer com mais clareza um julgamento moral,
podendo assim, agir de maneira correta no mais das vezes. “MK+ children have a higher acuity of appreciating
right from wrong, and a higher ability to act responsibly in any given set of
circumstances” (FAUST, 2009, p. 404). Porém, novamente o
autor esquece ou acoberta a influência do fator psicológico em uma dada ação. Talvez
o fato de se auto-compreender como um ser modificado geneticamente para a
moralidade causasse um desconforto que poderia atrapalhar seu julgamento moral
e consequentemente sua ação. Mais adiante o autor parece entrar em contradição
ao dizer que, do mesmo modo que um MK-, o MK+ também se arrepende de ter
cometido uma ação moral, sente ansiedade, medo etc. Se, de fato, o MK+ tivesse
mais perspicácia para julgar possibilidades de ação, ele jamais se arrependeria
de não ter cometido uma ação imoral. “The MK+ child might have regrets about not acting; she just is less
likely to turn those regrets into future wrong acts” (FAUST, 2009, 406). Ao
mesmo tempo em que o autor parece atribuir elementos cognitivos aos haplótipos
MK+, como uma melhor acuidade em relação a situações que necessitem de
julgamento moral, ele não faz valer essa ideia quando se trata de defender o
esforço e mérito da ação moral pela pessoa MK+, dizendo que este se arrepende
de ter cometido uma ação moral como se não percebesse o valor de sua ação.
Assim sendo, o haplótipo MK+ funciona como um impulso, um instinto para a
moralidade, sem poder algum para melhorar a nossa perspicácia para os cálculos
morais.
Isso traz à baila a questão da
interferência no livre-arbítrio.
2.
Interferência
no livre-arbítrio
Faust é claro ao dizer que o grupo de
genes MK+ não determina, mas apenas influencia a nossa ação, aumentando a
probabilidade de se cometer ações morais. Concordamos que talvez não haja
interferência do MK+ no livre-arbítrio, no entanto, tal influência pode
atrapalhar nossas ações morais e não levar a cabo as intenções de aprimoramento
moral. Nesse ponto o autor se vale novamente do argumento de que o MK+
proporcionaria uma melhor percepção, acuidade e etc., porém já vimos que essa
afirmação vai de encontro com o argumento que demonstra o mérito e esforço da
pessoa MK+. O esforço de Faust para salvaguardar a desejabilidade do
procedimento de aprimoramento moral genético reduz a quase nada a influência e
o valor positivo do MK+. Ele afirma que é apenas um impulso, uma predisposição
que sem a influência do meio e da educação não tem eficácia nenhuma.
O autor argumenta ainda que o
livre-arbítrio é um mistério e, tampouco sabemos como o MK+ influencia cada
etapa de uma ação (Cf. FAUST, 2009, p.405). Entretanto, podemos nos encher de
insegurança levando em consideração o mesmo argumento: se não sabemos como o
haplótipo da moralidade influencia nossa ação, então poderemos incorrer em
grave erro ao selecionar embriões MK+ em laboratório. Isso se agrava se
levarmos em consideração os fatores psicológicos envolvidos na questão como
mostramos mais acima.
Se pensarmos que esse processo de
aprimoramento moral tem uma natureza intervencionista, somos levados a crer que
não será eficaz se não for obrigatório para todos. Pois, se depender dos pais a
escolha ou não para o haplótipo MK+, nunca teremos uma sociedade totalmente
preparada para receber a moralidade. Por outro lado, submeter toda a humanidade
a um processo que pode ter severas consequências vai de encontro com o
princípio da beneficência procriativa, pois poderemos arruinar a possibilidade
de uma boa vida a toda uma geração vindoura. Ademais, a obrigatoriedade se
choca com a liberdade de auto-determinação dos filhos, assim como na liberdade
de escolha dos pais diante de uma proposta que não sabem ainda as
consequências. Talvez estejamos submetendo uma geração a um risco que não vale
a pena. E vale lembrar que na página 402 do artigo é dito: “nós queremos
melhorar o mundo [...] que geralmente significa trabalhar em direção [...] a
não interferência nos propósitos individuais” (FAUST, 2009). Parece-nos que não
levar em consideração os desejos e escolhas dos pais e os propósitos futuros
dos filhos são uma interferência nos propósitos individuais e isso indica um
retrocesso e uma piora do mundo.
3.
O
aprimoramento moral genético é desejável?
Segundo Faust, o aprimoramento moral
genético é recomendado e obrigatório, no entanto, devemos levar em consideração
que o fim a que esse processo almeja é o mesmo que o da nossa educação moral tradicional.
A pergunta é: porque submeter toda uma geração a riscos para atingir um fim que
nós temos conseguido realizar paulatinamente? Pois, o que sobrou ao MK+ depois
de resistir a todas as críticas respondidas por Faust? Apenas uma predisposição
cuja eficácia ainda depende da educação tradicional. Faust nem mesmo poderia
argumentar que a seleção para o MK+ é mais eficaz que o aprimoramento moral
tradicional, visto que em nenhum dos casos existe garantia de sucesso.
Não queremos proibir o aprimoramento
moral genético, mas apenas mostrar que os benefícios que ele pode trazer não
valem o risco de sua aplicação. Se, de fato, fosse encontrado um haplótipo da
moralidade, conviria que reformulássemos a nossa maneira de educar nossas
crianças e adolescentes. Não bastaria começar pela seleção genética, mas deveria
haver uma preparação de uma geração inteira. Precisaríamos de uma sociedade que
nela estivesse incutida princípios morais, normas e leis competentes para a
aplicação do aprimoramento moral genético, pois isso eliminaria muitas
consequências indesejáveis. No entanto, isso significa que precisaríamos já ser
morais para que o aprimoramento moral genético tivesse êxito e, assim, não
necessitaríamos mais deste. Não adianta esperarmos como que por uma dádiva
prometéica que nos torne morais.
Nós ainda, a despeito do tempo já
decorrido, não pudemos avaliar os resultados da educação moral tradicional,
visto que em muitos países, inclusive o nosso, existe um imenso déficit.
Sabemos que isso é um entrave para o aprimoramento moral genético, visto que
sem educação a engenharia genética de nada adiantaria. Assim, temos um imenso
trabalho a fazer e, certamente, ele não começa pela engenharia genética.
Portanto, à pergunta: o aprimoramento
moral genético é desejável? Respondemos que, embora ele compartilhe do mesmo
fim que nossa educação moral, seu procedimento é pouco viável e imprudente.
Conclusão
Examinamos o texto de H.S. Faust e
apresentamos críticas que nos parecem plausíveis ao seu artigo. Em alguns
momentos notamos um otimismo exagerado do autor em relação ao tema do
aprimoramento moral genético. Destacamos que Faust ignora intencionalmente o
problema da auto-compreensão de ser modificado, assim como apontamos a
contradição do autor em relação a uma possível maior percepção de um conjunto
de circunstâncias da pessoa MK+. Concordamos em parte com Faust a respeito do
livre-arbítrio, pois também não consideramos que o MK+ determine as pessoas a
certas ações. Porém, se não sabemos como funciona o livre-arbítrio também não
podemos estar seguros do tipo de influência dos genes da moralidade. O que de
mais importante fica nessa questão do livre-arbítrio é que o poder dos genes
diminui drasticamente quando confrontado com o argumento de que estes
cerceariam a nossa liberdade de ação. Isso põe em dúvida o valor positivo dos
MK+ frente às suas consequências. Por conseguinte, concluímos com a negação da
desejabilidade do aprimoramento moral genético e, por isso, a discussão em
torno da permissibilidade, proibição ou obrigatoriedade não vem ao caso, visto
que, embora concordemos que seja permitido, não concordamos que a seleção
genética para a moralidade seja desejável.
Portanto, afirmamos não ser prudente,
desejável nem viável o aprimoramento moral através da engenharia genética.
Referências
FAUST, H. S. Should
we select for genetic moral enhancement? A thought experiment using the
MoralKinder (MK+) haplotype. Published online:
Springer, 9 January 2009
HABERMAS,
J. O futuro da natureza humana. Trad.
Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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Moral enhancement
Linhas gerais sobre o conceito de "imaginário" em Castoriadis
Neste trabalho abordaremos o conceito de
imaginário no pensamento de Cornelius Castoriadis. Para tanto, nos valeremos
sucintamente de algumas considerações acerca de pontos que servem à
explicitação do conceito de imaginário em Castoriadis. São eles: a definição de
imaginário; a relação do imaginário com a sociedade; a relação sujeito-objeto;
e por fim, sobre o social-histórico.
1. O
imaginário
Castoriadis deixa claro no prefácio à Instituição imaginária da sociedade que
a noção de imaginário trabalhada por ele tem um sentido bastante peculiar. Não
se trata do oposto do que é real, não é reflexo, derivação de algo, mas é
criação ex nihilo e o próprio
fundamento daquilo que, por meio do imaginário, chamamos de realidade.
O imaginário de que
falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada
(social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais
somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos
‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos. (CASTORIADIS, 1982, p.13)
O
imaginário é criação a partir do nada. Mas criação de quê? O imaginário cria o
mundo, pois está na base de todo pensamento e possibilidade de sentido. O real,
o ser, a racionalidade, não são mais que produtos do imaginário. Enquanto criação, o ser não se fecha em uma
única determinação possível, pelo contrário, está sempre aberto, é sempre “por-ser” (CASTORIADIS, 1987, p. 233).
Percebemos que a ontologia tradicional é
abandonada e uma nova é posta em seu lugar. Enquanto a primeira nega o tempo,
uma vez que quer o determinado, eterno, imutável, regular, repetitivo,
circular, e assim, torna impossível as diferenças sócio-históricas, a segunda
quer a mudança e a abertura para a emergência do novo, pois ser é tempo, ser é por-ser. Enfim, o ser está em
construção. Aquilo que escapa a criação
imaginária social é o que Castoriadis chama de “primeiro estrato natural” ou
“mundo físico” e, como tal, é desprovido de significado. Podemos diferenciar
duas dimensões em que a sociedade opera: a dimensão conjuntista-identitária e a dimensão do imaginário. A primeira se
caracteriza pela determinação, pela submissão do mundo a classes e domínios
definidos, nela “a existência é determinidade” (CASTORIADIS, 1987, p.243). Por
outro lado, na dimensão imaginária a existência é significação. As
significações são conectadas umas as outras por uma lógica denominada
“magmática”. A sociedade e suas instituições não podem ser reduzidas a uma
explicação biológica, pois ela é regida por outra lógica e por outra
ontologia.
2. Imaginário
e sociedade
O que torna uma sociedade coesa são suas
instituições e estas possuem um tecido que as une como um todo: “o magma das
instituições imaginárias sociais”. Castoriadis define estas instituições como
magma porque elas são realidades fluidas, inconscientes que não podem ser
apreendidas pela lógica conjuntista-identitária.
E, ainda, estas instituições são imaginárias e sociais, porque são criação e
porque são “instituídas e compartilhadas por um coletivo social e anônimo.” (CASTORIADIS,
1987, p. 239)
“Tais significações imaginárias
sociais são, por exemplo: espíritos, deuses, Deus; polis, cidadão, nação, Estado, partido; mercadoria, dinheiro,
capital, taxas de juros; tabu, virtude, pecado, etc. Mas também: homem, mulher,
criança, tais como são especificados em uma sociedade dada” (CASTORIADIS, 1987,
p. 239)
É
a instituição imaginária da sociedade que estabelece seu próprio mundo de
significações, determinando o que é importante e o que não é, diferenciando o
verdadeiro do falso, o que tem sentido do que não tem. “Toda sociedade é uma
construção, uma constituição, uma criação de um mundo, de seu próprio mundo” (CASTORIADIS,
1987, p. 241).
3. Sujeito-Objeto
A temática da criação do mundo enseja a
referência à nova forma de Castoriadis compreender a relação sujeito-objeto. A
filosofia herdada reforçou essa distinção entre sujeito e objeto, ora
valorizando um, ora o outro, de modo que Castoriadis a caracteriza como:
“distinção rançosa e banal” (CASTORIADIS, 1990, p.262). Nosso autor defende que
há seres como sujeitos e seres como objetos, mas um não subsume o outro nessa
relação. Não podemos nos entregar a um “delírio solipsista” (ibid.), afirmando que
tudo que há é fruto de nossa consciência transcendental, nem tampouco que o
objeto possua significados em si mesmo. A relação sujeito-objeto para
Castoriadis necessariamente apresenta um terceiro fator: o mundo enquanto tal
deve ser passível de organização. Ou seja, o mundo se permite moldar.
Ainda que eu pense que a
organização que eu, enquanto sujeito pensante, imponho ao que é, ou ainda a
organização que os seres vivos em geral ao mesmo tempo que exibem neles mesmos
e impõem ao seu mundo, em todo caso, nem um nem outro poderiam existir se o
mundo, como tal, em si, não fosse organizável.
(CASTORIADIS, 1990, p. 263)
Mas
neste caso, esse mundo enquanto tal, embora necessário, configura apenas um
primeiro estrato natural que permite ao ser se estender infinitamente através
de sua criação social-histórica.
4. O
social-histórico
O social-histórico foi ignorado pela
filosofia como modo de ser. Ele vai de encontro a todo desenvolvimento da
ontologia tradicional. O ser é, para Castoriadis, o contrário de toda determinidade,
pois é Caos, é sem-fundo (CASTORIADIS,
1987, p.233) e, sobretudo, ser é tempo. A sociedade cria, faz emergir o novo,
institui e é instituída no tempo, mas também cria o tempo, pois este é mais uma
de suas instituições imaginárias sociais.
“A história é gênese ontológica”, pois o por-vir-a-ser se faz na história segundo as auto-alterações da
sociedade. Esta muda constantemente de aspecto, forma (eidos) e tal forma é
imposta violentamente aos núcleos das psiques individuais. Os indivíduos são
resultados da fabricação do imaginário social.
CONCLUSÃO
O conceito de imaginário é central no
pensamento de Castoriadis e se presta a uma crítica do pensamento herdado. Não
se busca determinações no ser, pelo contrário, o ser se faz, se constrói
constantemente através do imaginário social-histórico. A elucidação de como a
sociedade se institui torna os homens e as sociedades mais conscientes, capazes
de fazer o que pensam e pensar no que fazem. Tudo é da ordem do
imaginário.
BIBLIOGRAFIA
CASTORIADIS,
C. A
Instituição Imaginária da Sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
_______________.
As Encruzilhadas do Labirinto/2. Os
Domínios do Homem. Tradução por José Oscar de Almeida Marques. Rio, Paz e Terra, [1986].1987.
_______________.
O Mundo Fragmentado. As Encruzilhadas do Labirinto/3. Tradução por Rosa Maria Boaventura. Rio, Paz e Terra, [1990].1992
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