quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A moral como antinatureza


Uma moral se caracteriza como antinatural quando seus preceitos se voltam contra os instintos da vida. O cristianismo é o maior exemplo de uma moral antinatural. E isso se deve ao fato da moral cristã declarar guerra contra os instintos e paixões de maneira a querer extirpá-los, e, se possível, também os veículos pelos quais é possível lhes dar vazão (cf. Nietzsche, 2008, p.33). Deste modo essa moral se posiciona contra a vida, privilegiando uma vida e um mundo fantasioso que estranhamente se tornou o mundo verdadeiro.
A radicalidade dessa moral que quer “arrancar o mal pela raiz” só evidencia uma verdade que quer se manter escondida: aqueles que se posicionaram hostilmente contra as paixões e que anunciaram em praça pública sua ojeriza a toda sensualidade são os mais degenerados (cf. Nietzsche, 2008, p.34). Pois estes não suportam conviver com seus “diabos”, os querem longe de si. São decadentes, naturezas enfermas que não são nem libertinos nem ascetas. Pois se fossem ascetas não teriam necessidade de lutar contra os instintos, já os teriam vencido. Seu desejo de denunciar os “pecados” se configura apenas como um auto-covencimento para reforçar sua vontade hesitante.
A castração dos instintos que surge como preceito no Sermão da montanha: “arranca-o de ti” (Nietzsche, 2008, p.33), demonstra toda a estranheza à vida evidenciada na moral cristã. Esta obriga Nietzsche a elogiar a moral precedente. N’O problema de Sócrates o filósofo alemão chama os judeus de dialéticos (Nietzsche, 2008, p.20), provavelmente pela natureza enganadora de um dos patriarcas do povo judeu: Jacó. Não obstante, comparado a moral cristã, o judaísmo merece ser elogiado. Pois o Deus dos Judeus é Senhor da guerra, não um pai amoroso; viviam sob a ideia de que deveriam ser cabeça e não cauda, enquanto o cristianismo prega o deixar-se humilhar; é uma moral viril que fez um deus a sua imagem, um deus que legitimou sua vontade e disse não a submissão e a resignação que são sabidamente características cristãs. Mas a diferença que deve ser marcada aqui ainda não foi dita: O aleijo, a castração, as anomalias físicas, não eram de modo algum motivadas como no sermão da montanha. Pelo contrário, tudo que mostrava fraqueza era mau, digno de vergonha. O medievo Abelardo quando foi emasculado se entristeceu profundamente ao lembrar-se da distância dos cultos e cerimônias religiosas que eram impostas aos judeus deformados e de toda a ignomínia a que eram submetidos. Essa oposição mostra o quanto de negação à vida há na moral cristã.
Ademais, a erradicação dos desejos e impulsos que visam a uma paz de espírito anula o movimento, a diferença, a multiplicidade, enfim, anula a vida. Os instintos não devem ser erradicados, devem ser espiritualizados. Por exemplo: a sensualidade espiritualizada é o amor (Nietzsche, 2008, p.34). E deste modo, os instintos enquanto parte da vida são afirmados. A vida é afirmada. Se pensarmos na inimizade segundo a moral cristã, veremos somente como um mau a ser arrancado, porém devemos ter em mente que a inimizade em forma de oposição é uma maneira de dinamizar a vida, de dar movimento, de permanecer existindo. Se, então, negarmos a inimizade como um instinto de vida, negaremos a vida em detrimento de uma paz de espírito. E esta talvez seja apenas um mal-entendido, pois tomaram como espiritual algo inteiramente animal como, por exemplo, uma “digestão bem sucedida”. Talvez a “paz de espírito” não seja mais que isso.
A moral cristã se revoltou contra a vida. O mundo (kósmos) já não é visto como uma ordem, mas como sinônimo de impureza e pecado. A vida foi condenada. E o absurdo disso é que a vida foi condenada por um vivente. Como, pois, um vivente pode ser imparcial o bastante para emitir um juízo sobre a vida? Como esse juiz conheceria todas as diferentes maneiras de viver para poder atribuir valor a vida? É um “problema inacessível”. Mas a moral cristã inverteu os valores: o que é fraco ela chamou de forte e o que é forte fraco. “Ela diz: pereça!” (Nietzsche, 2008, p.37) Ela diz: viver é há muito tempo estar enfermo (Nietzsche, 2008, p.17), tal como disse Sócrates, o qual é encarado por Nietzsche como cristão, mesmo tendo vivido antes de cristo. Essa moral quer identidade e não multiplicidade, quer eternidade e não devir, quer estaticidade e não movimento, quer a morte e não a vida, quer o nada. E o seu desejo de identidade se manifesta sempre que um padre ou pastor quer que todos sejam iguais, iguais a ele, iguais entre si. A imagem do rebanho representa perfeitamente o aspecto da identidade no cristianismo. Moral de rebanho.
Uma moral natural é caracterizada pela dominação de um instinto da vida. Afirma a vida. E tudo aquilo que vai de encontro à vida e a seus instintos é rejeitado. Os preceitos morais se baseiam na vida, nesta, na única que possuímos. Não quer identidade, quer diferença, quer oposição, multiplicidade, movimento, devir... A antinatural diz: pereça!

REFERÊNCIAS
Nietzsche, Friedrich. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.