Renato
dos Santos Barbosa
Resumo:
O ceticismo, por vezes, é alvo de críticas grosseiras decorrentes de uma má
compreensão de seus princípios e finalidades. Além disso, a epoché (suspensão do juízo), ao longo da
história, foi tomada como característica primordial do ceticismo, ao passo que
a ataraxía (tranquilidade) ficou,
inapropriadamente, à margem das explicações da natureza do ceticismo. Com base
nas explicações de V. Brochard e P. Hadot se pode observar que a epoché se submete, antes de tudo, à obtenção
de certo modo de vida. Estas explicações
partem, sobretudo, dos testemunhos a respeito de Pírro de Élis (365 a.c), tido
por alguns como fundador da filosofia cética, denominada, então, de ceticismo
pirrônico ou pirronismo.
Palavras-chave:
Ceticismo, Suspensão do juízo, Tranquilidade, Modo de vida.
São conhecidas as histórias, um tanto
pitorescas, sobre a vida de Pírron[1].
Conta-se que nada o desviava de sua rota, fossem carruagens ou precipícios, mas
que continuava placidamente seu caminho como se nada existisse. Conta-se ainda
que vendo seu mestre Anaxárcos caído em um pântano não o ajudou, ao passo que
seu mestre elogiou sua indiferença[2]. Estes
relatos se prestam a exaltar a indiferença (adiaforia)
e a tranquilidade (ataraxía) de
Pírron e a traçar os contornos dessa que foi uma das personalidades mais marcantes
da filosofia helenística. No entanto, tais relatos também podem contribuir para
a má compreensão do que foi o ceticismo pirrônico e de quem foi a própria
figura de Pírron. Pois baseados nessas narrativas, os opositores do ceticismo
acusaram-no de promover a apraxia, pois não se poderia viver e agir segundo os
moldes do discurso cético[3]. Some-se
a isso o problema de terem colocado em segundo plano o próprio fim do
ceticismo, o resultado da suspensão do juízo: a tranquilidade e a indiferença,
e, então, teremos todos os motivos para criticá-lo. Porém, o argumento dos dogmáticos só se
estabelece por desconsiderar que “como a de Sócrates, como a dos cínicos, a
filosofia de Pírron é, antes de tudo, uma filosofia vivida, um exercício de
transformação do modo de vida”. (HADOT, 2004, p. 169). Para tratarmos desses
assuntos é preciso compreender os princípios e finalidades do ceticismo. Para
tanto utilizaremos o livro I das Hipotiposes
Pirrônicas (HP) de Sexto Empírico e o livro IX das Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres de Diôgenes Laêrtios (DL).
Epoché: a suspensão do juízo
Sexto Empírico afirma que a epoché “é um estado mental de repouso no
qual não afirmamos nem negamos nada” (HP,
I, 10).
Este estado mental decorre da aplicação do princípio básico do ceticismo, qual
seja: o de “opor a cada explicação uma outra equivalente (HP, I, 6
)[4]”.
Diante das múltiplas explicações dos fenômenos o cético prefere abster-se de
proferir juízos, uma vez que as controvérsias são produzidas por argumentos e
discursos equipolentes. De acordo com Brochard,
a razão aduzida por Pirro é que “sempre podem ser
invocados argumentos de força igual a favor e contra cada opinião (antilogía). O melhor é, pois, não tomar
partido, confessar que não se sabe nada (akatalepsía);
não inclinar-se para nenhum lado; permanecer em suspensão (epoché)” (BROCHARD, s.d, p. 5)[5]. No entanto, a epoché não é um fim em sim mesma. Por trás da abnegação de proferir
juízos sobre os fenômenos repousa o desejo de se manter tranquilo (ataraxía). Diante de fenômenos cuja
explicação é controversa, resta-nos, apenas, desvencilhar-nos de qualquer
disputa sobre eles. O cético vive tranquilo porque não se preocupa com questões
insolúveis, nem acha que encontrou a verdade no mito, na filosofia ou em
qualquer outro segmento do saber que julga explicar a realidade. Por
isso nos diz Sexto que “o princípio causal do ceticismo é a esperança de se
tornar tranquilo” (HP, 1, 12).
“Cansado das discussões eternas em que se comprazem seus contemporâneos,”
comenta Brochard, “Pírron toma o partido de responder a todas as perguntas:
‘não sei nada’” (BROCHARD, s.d, p. 12).
Ataraxía: a tranquilidade da alma
Podemos traduzir o
termo grego ataraxía por
tranquilidade ou imperturbabilidade. Segundo Sexto Empírico, “ataraxía é a ausência de perturbação ou
a calma da alma” (HP, 1,
10). A
tranquilidade seria a finalidade do ceticismo na interpretação de Sexto. É para
alcança-la que o cético suspende o juízo, a epoché
não pode, portanto, ser pensada sem a ataraxía.
No entanto, segundo o relato de Diôgenes Laêrtios, “O
fim supremo para os céticos é a suspensão do juízo, à qual se segue a
impertubabilidade como se fosse uma sombra, como dizem Tímon e Ainesídemos e
seus adeptos (de Pírron)” (DL, IX, 107). Por outro lado, Sexto parece criticar
a posição apresentada por Diôgenes Laêrtios, desde que reforça a definição de
finalidade (télos): “é aquilo visando
o que todas as ações e raciocínios são realizados, enquanto que ela própria não
existe com nenhum outro objetivo” (HP,
1, 25). O fim supremo, portanto, não admite nada que se lhe siga nem mesmo que
seja “como uma sombra”. Assim, a finalidade do ceticismo não pode ser outra
coisa senão a ataraxía. Eis o que diz
Sexto:
Dizemos ainda que a finalidade do
cético é a tranqüilidade em questões de opinião e a sensação moderada quanto ao
inevitável. Pois o cético, tendo começado a filosofar com o objetivo de decidir
acerca da verdade ou falsidade das impressões sensíveis de modo a alcançar com
isso a tranqüilidade, encontrou-se diante da eqüipolência nas controvérsias, e
sem poder decidir sobre isto, adotou a suspensão, e, em conseqüência da
suspensão seguiu-se, como que fortuitamente, a tranqüilidade em relação às
questões de opinião. Pois aqueles que mantêm uma opinião sobre se algo é por
natureza bom ou mau estão sempre perturbados. Quando se encontram privados
daquilo que consideram bom, sentem-se afligidos por algo naturalmente mau e
passam a buscar aquilo que pensam ser bom. E ao obter isso sentem-se ainda mais
perturbados, já que ficam contentes de forma irracional e imoderada e passam a
recear que as coisas mudem e percam aquilo que pensam ser bom. Mas, ao
contrário, aqueles que não determinam serem as coisas naturalmente boas ou más,
não as evitam nem as buscam avidamente, e, por isso, não se perturbam. (HP, 1, 26-27)
Podemos
observar, através dessa leitura, que o ceticismo tem uma finalidade ética, um
discurso que anuncia um modo de vida pelo qual se pode obter a tranquilidade e
a paz da alma. “A filosofia cética, isto é, o modo de vida, a escolha de vida
dos céticos, é a da paz, da tranquilidade da alma” (HADOT, 2004, p. 209).
Improcedência
das críticas dos dogmáticos
Diôgenes Laêrtios nos informa que os
dogmáticos acusavam os céticos de promover a apraxia, uma vez que, não defender
uma opinião sobre os fenômenos, nos impossibilitaria de realizar qualquer
atividade cotidiana, como comer, andar, produzir etc. “Além disso os dogmáticos
dizem que os céticos suprimem a própria vida, pois rejeitam tudo que compõe a
vida” (DL, IX, 103). Porém existem interpretações diferentes a respeito do
ceticismo. O próprio Diôgenes Laêrtios veicula a opinião de um dos discípulos
de Pírron chamado Ainesídemos dizendo: “Ainesidemos, entretanto, afirma que na
filosofia Pírron aplicava o princípio da suspensão do juízo, porém na vida
cotidiana não lhe faltava a precaução. (DL, X, 62). Isso significa que, embora
duvidasse e consequentemente suspendesse o juízo a respeito dos fenômenos de
explicações conflitantes, o cético não deixa de viver e realizar suas
atividades corriqueiras. Como diz Brochard:
É importante
assinalar que a dúvida cética não diz respeito às aparências ou fenômenos (fainómena) que são evidentes (enargé), mas unicamente às coisas
obscuras ou ocultas (ádela). Nenhum
cético duvida de seu próprio pensamento. O cético reconhece que é dia, que ele
vive, que vê claramente. Não contesta que tal objeto lhe parece branco, que o
mel lhe parece doce (BROCHARD, sd. p. 5).
O
cético não duvida que os fenômenos o afetem. Ele sente sabores, odores, sons e
vê imagens, no entanto, não sabe o que essas coisas são.
Aqueles que afirmam que o cético
rejeita o aparente não prestaram atenção ao que dissemos. Pois, como dissemos
antes, não rejeitamos as impressões sensíveis que nos levam ao assentimento
involuntário e estas impressões são o
aparente. E quando investigamos se as coisas na realidade são como parecem ser,
aceitamos o fato de que aparecem e o que investigamos não diz respeito à
aparência, mas à explicação da aparência, e isto é diferente de uma
investigação sobre o aparente ele próprio (HP,
1, 19).
Que
há aparências, no sentido de que há coisas que nos afetam, nunca foi posto em
dúvida pelo ceticismo pirrônico. Ao comer mel o cético sente a doçura, mas será
que de fato o mel é doce assim como o sentimos? Esse é o motivo pelo qual o
cético não afirma que o mel é doce, amargo ou salgado. “Ele se limitará, em
todas as coisas, a descrever o que experimenta, o que lhe aparece, sem nada
acrescentar ao que são ou ao que valem as coisas; contentando-se em descrever a
representação sensível que é a sua e em enunciar o estado de sua sensibilidade,
sem a ela acrescentar o seu parecer”. (HADOT, 2004, p. 212) É uma má
interpretação pensar que o ceticismo renuncia a própria vida por causa da epoché. Antes, a suspensão do juízo se
põe em função da vida. “Na prática, o sábio deve
viver como todo mundo, conformando-se às leis, aos costumes, à religião de seu
país” (BROCHARD, sd. p. 8).
Conclusão
O ceticismo não se contradiz
quando se levanta a questão do modo de vida, a saber: como viver ao modo cético
se a suspensão do juízo decorre de seus princípios básicos? Ou melhor, como
viver sem emitir juízos sobre os fenômenos? Mas, como vimos, o ceticismo tem
seu ponto de partida na consideração de um modo de vida específico. Para
atingi-lo é necessário suspender o juízo em relação às explicações dadas sobre
o mundo fenomênico. Nausífanes discípulo de Pírron dizia que “na
disposição espiritual devemos seguir Pírron, mas devemos seguir-nos em questões
de doutrina” (DL, IX, 64). Isso aponta para a admiração que os gregos sentiam
por Pírron, não tanto pelo seu discurso, mas pelo modo de vida que escolheu. No
ceticismo antigo existia uma proeminência da transmissão de um modo de viver em
relação ao discurso dito filosófico (ou teórico). Lembrando as palavras de
Brochard: “Pirro talvez tivesse sorrido e mostrado alguma compaixão, se tivesse
visto Sexto Empírico fazer tanto esforço para reunir em duas e intermináveis e
indigestas obras todos os argumentos céticos” (BROCHARD, sd. p. 20). Sem dúvida
uma vida tranquila, sem perturbações e temores, era o alvo de Pírron e seus
discípulos.
Bibliografia
BROCHARD,
V. Pirro e o ceticismo primitivo.
Trad. Jaimir Conte. Disponível Em: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-brochard-pirro.pdf. Acesso em: 22
novembro 2012)
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos
filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1988
HADOT,
P. O que é filosofia antiga? Trad. Dion
Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines
of scepticism. Edited by J. Annas and J. Barnnes. New
York: 2007.
SEXTO
EMPÍRICO. Hipotiposes Pirrônicas, livro I.
Trad. Danilo Marcondes. O que nos faz
pensar nº 12. Rio de Janeiro: setembro 1997.
[1]
Aproximadamente 360-270 a.C
[2]
Cf. DL, IX, 62; 68
[3]
“Além disso os dogmáticos dizem que os céticos suprimem a própria vida, pois
rejeitam tudo que compõe a vida” (DL, IX, 103).
[4] DL,
IX, 75: “Não mais uma coisa que outra”.
[5]
Trad. Jaimir Conte. Disponível Em: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-brochard-pirro.pdf. Acesso em: 22
novembro 2012); Título original: “Pyrrhon et le scepticisme primitif”. Artigo publicado na Revue philosophique de
la France et de l’Étranger, Ano 6, 1885, p. 517-532.