quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A CONSCIÊNCIA DE SI, EM E PARA SI NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO DE HEGEL


1 INTRODUÇÃO

Seguindo os caminhos sinuosos “da ciência da experiência que faz a consciência”, pretendemos investigar a transição da consciência de si enquanto mera igualdade consigo mesma ou, como dirá A. Kojève, como “sentimento de si” (2002, p.11), em direção à verdade da certeza de si, momento em que a consciência não é mais apenas para si, mas também é para si como verdade, isto é, quando ela se torna em si e para si.

É inevitável que nesse percurso tenhamos que nos deparar com a célebre descrição imagética da Dialética do Senhor e do Escravo. Através dela perceberemos a impossibilidade de se dissociar subjetividade de intersubjetividade ou, dito de outro modo, perceberemos a irrealidade da subjetividade no sentido legado pela tradição cartesiana.

O nosso móbil principal nesse artigo é a questão: como posso estar seguro do conhecimento desse Ser que Eu sou?

2 A transição da imediatez da consciência de si para a certeza da verdade de si mesmo.

Em linhas gerais podemos afirmar que a experiência com o mundo exterior conduz a consciência para a descoberta de si mesma, como explica P. Meneses: “[...] a consciência é movimento de retorno, a partir do ser percebido e sentido, sobre si mesma.” (1992, p. 56). As constantes fugas da realidade à sua apreensão constatam que “o mundo não se deixa dominar” (KONDER, 1991, p. 30), momento em que se dá a emergência da consciência de si.

Não obstante, ao se colocar a si mesmo como objeto, o Eu ou a Consciência se reduz a excluir tudo o que não seja Eu, fechando-se em uma “tautologia sem movimento” (HEGEL, 2008, § 167), reduzindo-se então ao “Eu sou Eu” (Ich bin Ich). Assim, o objeto marcado com o sinal do negativo, ao ser suprimido pela consciência igualadora do não-igual, “retornou sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também [fez o mesmo]” (HEGEL, 2008, §168). Ou seja, a consciência se fecha sobre si por não conseguir se satisfazer no Outro, pelo fato mesmo de dissolver o Outro em si mesma, mantendo a igualdade estática de sua identidade consigo. Portanto, a consciência se mostra como o puro vácuo abismal do desejo.

Entretanto, a consciência de si não pode suprimir o objeto na medida em que ele retorna sobre si em sua independência, gerando, assim, um eterno desejar o Outro, impedindo a satisfação da consciência. Esta só teria satisfação se o objeto operasse a negação em si mesmo, fazendo nele mesmo o que a consciência faz sobre ele, ou seja, sendo para a consciência o que ele é em si mesmo. “Mas quando o objeto é em si mesmo negação e nisso é ao mesmo tempo independente, ele é consciência” (HEGEL, 2008, §175).

Desse ponto em diante começamos a compreender a transição pela qual passa a consciência de si em sua imediatez estática. Esta é de tal modo diferente do estágio posterior que A. Kojève a denomina, justamente com a intenção de elucidar a diferença, sob a alcunha de “sentimento de si”. Não se pode atribuir ainda, nesse momento, o status de consciência de si em e para si, visto que não se alcançou ainda a si mesma como verdade, isto é, não se pode falar ainda na verdade da certeza de si mesmo e, consequentemente, não podemos estar seguros do que somos. É justamente aqui que o desejo, que antes se relacionava com os objetos, com a natureza, com a vida, enfim, com o mundo externo, direciona-se para um outro desejo, isto é, para uma outra consciência de si também negadora do dado. Desejamos o desejo do Outro e só nele gozamos a satisfação de nosso desejo. Como diz Hegel: “a consciência de si só alcança sua satisfação em uma outra consciência de si” (2008, §175)

Por conseguinte, a consciência de si só pode efetuar essa transição de seu estado apenas para si ou, como queria Kojéve, do sentimento de si em direção à consciência de si em e para si se colocar o objeto no Outro, mas, agora, em um Outro que também é um Eu, consciência negadora. Assim, “[...] a consciência de si é só para-si e em-si quando assim é reconhecida por outra consciência de si”. Adentramos, então, numa das passagens mais conhecidas e trabalhadas da Fenomenologia do Espírito: a dialética do senhor e do escravo[1].

3 A perversidade da Dialética do senhor e do escravo

A subjetividade só se põe em uma relação intersubjetiva. Não podemos estar certos de nós mesmos sem essa relação com o Outro humano enquanto humano. E a maneira pela qual Hegel aborda a questão revela o lado perverso[2] desse processo em que a consciência se faz. Deixemo-nos levar, então, pelo processo de obtenção da consciência de si em e para si.

Lembremos que na relação sujeito-objeto em que a consciência suprimia em si o objeto, ela estava ensimesmada, não podendo estar certa de sua verdade enquanto consciência. Pois “a consciência de si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido” (HEGEL, 2008, § 178). Esse reconhecimento se dá na medida em que a consciência suprime o Outro e ao suprimi-lo adquire a certeza de sua essência vendo a si mesma no Outro e, em segundo lugar, suprimindo a si mesma no Outro. É, pois, um suprimir de duplo sentido. Mas ao fazer isso a consciência deixa o outro livre novamente. Devemos entender que esse movimento se dá de ambas as partes, considerando duas consciências de si agindo simultaneamente.

Como foi dito, a consciência suprime a si mesma por meio do Outro, este se apresenta como o termo médio de um silogismo que se conclui com a supressão da consciência pela própria consciência, como se ela fosse objeto para si mesma. Mas esse enfrentamento é, inicialmente, semelhante à relação com os objetos, de modo que essas consciências ainda permanecem “imersas no ser da vida” (HEGEL, 2008, §185), certas apenas a respeito de si, mas não a respeito do Outro. A arena está montada e o embate se anuncia. Pois uma consciência quer que a Outra a reconheça da mesma maneira que ela está certa de si, enquanto, por outro lado, a outra consciência quer o mesmo, confrontando-se em uma “luta de puro prestígio” (KOJÈVE, 2002, p. 22).

As duas consciências de si que se confrontam desejam que a certeza que elas têm de si mesmas sejam elevadas à verdade e, para isso, é preciso o reconhecimento do Outro, ou seja, aquilo que acreditamos ser é apenas uma certeza vazia até o momento em que aquilo que estamos certos de ser se confunda com aquilo que o Outro está certo de que somos. Por isso desejamos o desejo do outro. Desejamos ser desejados pelo Outro, na medida em que queremos ser reconhecidos como desejáveis. Mas, para tal, é necessário arriscar a vida em sua imersão animal, “portanto, a relação das duas consciências de si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma ou outra através de uma luta de vida ou morte” (HEGEL, 2008, §187). Aquele que desprezar a sua vida se sagrará vencedor dessa luta, pois afirmou sua certeza acima de sua condição natural. Por outro lado, o perdedor, que é tal porque não arriscou sua vida, não alcançou o reconhecimento, mas, temendo, cedeu à dominação do senhor. Trabalhando os objetos o escravo os transforma para seu senhor, de modo que este consegue o que antes não conseguia: gozar a plena satisfação de seus desejos, pois “[...] para o senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem a ser como a pura negação da coisa, ou como o gozo – o qual lhe consegue o que o desejo não conseguia: acabar com a coisa, e aquietar-se no gozo.”

Entretanto, a verdade de si mesmo que o senhor encontrou por meio da consciência escrava “não corresponde ao seu conceito” (HEGEL, 2008, §192), pois o reconhecimento que advêm de uma consciência dependente não é reconhecimento verdadeiro, nem serve de parâmetro para a afirmação da certeza de si como verdade. Pois “[...] esse reconhecimento é unilateral, porque ele não reconhece a realidade e dignidade humanas do escravo (...) ele é reconhecido por alguém que ele não reconhece” (KOJÈVE, 2002, p. 23). Eis, então, o lado perverso, o lado trágico da dialética do senhor e do escravo: a posição privilegiada não é a do senhor, mas a do escravo. Logo, aquilo que era almejado pelo senhor: ser consciência em e para si, só pode ser alcançado pelo escravo através do medo e do trabalho. O escravo é o único nessa relação que pode ser reconhecido por alguém que ele mesmo reconhece. Mas para isso, ele deve transcender o seu estado de consciência ainda limitado. Hegel descreve a possibilidade dessa transição por meio do medo e do trabalho:

No senhor, o ser para si é para o escravo um Outro, ou seja, é somente para ele. No medo, o ser para si está nele mesmo. No formar, o ser para si se torna para ele como o seu próprio, e assim chega à consciência de ser ele mesmo em si e para si. (HEGEL, 2008, §196)

É através do medo e do trabalho que o escravo toma consciência de si. A supressão de si mesmo que se dá no sentimento de medo diante do senhor é fator determinante para essa transição de sua realidade antes presa ao ser natural. A construção da consciência de si acontece ao transformar os objetos naturais através do trabalho formador, de modo que, ao transformar a natureza sem a consumir a consciência escrava se desapega de sua realidade biológica. É aí, então, que se torna possível a coincidência do ser para si com o ser em si, uma vez que ela se reencontra de si por si mesma por meio do trabalho formador e “vem a ser sentido próprio” (HEGEL, 2008, §196)

4 CONCLUSÃO

No caminho em direção a certeza da verdade de si mesmo há uma pedra, uma pedra sem a qual o fim almejado não se alcançaria. O percurso pelo qual nos tornamos certos de nós mesmos não é direto e sem desvios, nem poderia ser melhor e mais fácil do que é, uma vez que seus declives e aclives são constitutivos do caminho mesmo. Não podemos pensar subjetividade sem intersubjetividade. A não ser que nos contentemos com um Eu sou Eu vazio de certezas, o qual sempre carregará consigo a angústia advinda do fato de que talvez não sejamos o que pensamos. Mas todos os dias uma arena se forma e o embate se anuncia.

REFERÊNCIAS

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. trad. Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. Petrópolis RJ: Vozes/ Ed. Universitária Sao Francisco, 2008.

KONDER, L. Hegel, A Razão Quase Enlouquecida. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991.

KOJÈVE, A. Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: CONTRAPONTO EDITORA/Ed. UERJ, 2002.

MENESES, P. Para ler a Fenomenologia do Espírito, roteiro. São Paulo: EDIÇÕES LOYOLA, 1992.



[1] Parágrafos 178 a 196 na tradução de Paulo Meneses, 2008

[2] Cf. Konder, 1991.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Nietzsche - Verdade e Mentira


Nietzsche em seu texto intitulado Verdade e mentira no sentido extra-moral denuncia, nos primeiros parágrafos, a vaidade do conhecimento humano, a contradição do impulso a verdade e sobre as raízes enganosas de nosso intelecto. Relacionaremos aqui os conceitos: homem, intelecto e realidade, buscando compreender a denúncia Nietzschiana ao que toda tradição filosófica chamou de verdade.

Embora seja um animal frágil, o homem se julga o ápice da “criação divina”. Julga-se a única espécie capaz de desvendar os segredos do universo. Mas essa soberba quer esconder o caráter fugaz e gratuito de sua existência. Por trás da inventividade dos seus mitos originários cheios de glória residem fraquezas e insuficiências diante da imensidão cósmica. É, justamente, por causa da falta de vigor de sua espécie que os homens inventaram o conhecimento.

Como pode uma bengala sobrepujar uma perna? Essa pergunta metafórica resume bem o que aconteceu com o homem: seu intelecto derivado de sua fraqueza outorgou para si o lugar de proeminência na natureza. Desprovidos de garras e chifres, o homem se valeu do engano e da dissimulação para obter vantagens que não teria naturalmente. E, contraditoriamente, o intelecto que surgiu com o fito de enganar se quer como meio para a verdade.

Nada é mais estranho que o impulso à verdade. O homem esqueceu-se de sua criação, esqueceu-se que a verdade e a mentira foram estabelecidas por convenção e que aquilo que ele julga estar distante quando mente e perto quando diz a verdade não chega nem a riscar de leve a realidade. O ser humano pode ser comparado a um surdo que crê saber o que é a experiência de ouvir música por ler uma partitura. A realidade está para lá da verdade do homem.

Assim, o homem pensa estar de posse do conhecimento verdadeiro do mundo, mas, no mais das vezes, esse conhecimento verdadeiro não se adéqua nem mesmo à verdade enquanto convenção por ele mesmo estabelecida. Se, de fato, há uma verdade, o homem está, talvez, terminantemente longe dela, pois a verdade convencionada pelos homens encobre a possibilidade de se conhecer “a coisa em si”.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Resumo crítico acerca de capítulos escolhidos do livro “O complemento do Sujeito” (XVII ao XX) de V. Descombes


Após estabelecer referências no campo da linguagem acerca da questão filosófica do sujeito, V. Descombes experimenta aplicar o resultado dessa abordagem sobre os modos pelos quais a tradição filosófica tratou a questão do sujeito. Considerando que essa questão tem certidão de nascimento, por que não começar por aquele que marcadamente se reconhece como o iniciador dessa tradição – Descartes – e que “nos fez sujeitos de nós mesmos”?

V. Descombes esclarece que podemos encarar o argumento do Cogito cartesiano sob duas leituras distintas. A primeira entende que o objetivo de Descartes era provar a existência da alma imaterial, sendo, portanto de cunho “realista” ou “substancialista” (e nesse sentido nem ao menos poderíamos estabelecer Descartes como o ponto de partida da discussão sobre o sujeito) e a outra, como seria necessário a um herdeiro cartesiano, encara o cogito como forma de assegurar uma existência como sujeito e não como substância imaterial (alma). Os defensores dessa última posição afirmam que se Descartes utilizasse o nosso vocabulário, já destituído de uma linguagem escolástica, ele utilizaria o termo “sujeito” em detrimento do termo “alma” que ele, de fato, preferiu.

Não obstante, as duas posições encontram problemas, visto que inferir do “Eu penso” que “sou uma alma imaterial” é concluir de algo verdadeiro uma afirmação da qual não podemos obter provas e, por outro lado, derivar da afirmação “Eu penso” que “Eu sou meu ato de pensar” é mais absurdo ainda. Pois, afirmar que ao pedido: “Queira pensar em algo” eu me ponha a existir magicamente ou, dito de outra maneira, presumir que eu tenha o poder de entrar e sair da existência a cada vez que tenha vontade, parece ser contra-intuitivo. Aceitar isso poderia implicar em admitir que cada ato de pensar produziria um sujeito distinto do anterior, a menos que os atos de pensar fossem apenas manifestações descontínuas de um mesmo ato de pensar.

Entretanto, quando se diz que o sujeito é o sujeito do pensamento não se quer dizer “nada do sujeito do ato de pensar, senão que ele é o sujeito desse ato”. Ou seja, não se quer estabelecer o conteúdo desse sujeito, mas apontar que o ato de pensar pressupõe um sujeito pensante. O sujeito de forma alguma é identificado com um verbo, mas com um primeiro actante do qual segue o ato de pensar.

Por outro lado, Nietzsche colocou a dúvida a respeito do verbo “pensar” mais ou menos nestes termos: por que ele não pode ser visto como os verbos “chover” ou “nevar”? Será que pensar implica na existência de um sujeito ativo do pensamento? Ele desloca a questão, pois em vez de se perguntar: quem é o sujeito (ativo) do pensamento? Em vez disso, ele se pergunta: Eu sou ativo ou não quando penso? A questão, como em Éttienne Balibar, passa a ser a do estatuto actancial do verbo. A preocupação agora não é mais com um sujeito, mas com um agente.

Especulações filosóficas a parte, dirá Descombes que “partindo do pressuposto de que existe tal conexão predicativa”, ou seja, que o verbo “penso” exige um sujeito actancial, “essa questão do subjectum pode ser colocada”, isto é, podemos manter a necessidade de um sujeito para o ato de pensar.

Ao fim do capítulo XVII, Descombes exporá a disputa que ocorreu entre Descartes e Hobbes acerca da materialidade ou imaterialidade desse sujeito que a ambos parece existir por força de necessidade. Esta última exposição pode fazer o leitor indagar a sua utilidade no corpo do texto desse capítulo específico, ou ainda, sua pertença ao grupo de argumentos que interessam à questão do sujeito. Não faz sentido se debruçar sobre uma sub-questão que pressupõe a resolução de uma questão maior que ainda não foi respondida. Diríamos que essa discussão sobre a questão da materialidade ou imaterialidade do sujeito se assemelha com as discussões escolásticas que punham em pauta a questão: “quantos anjos podem dançar sobre a cabeça de um alfinete ao mesmo tempo?” Desde que não possamos provar a existência de anjos, isso não nos interessa. Com isso não estou negando a importância da disputa entre Descartes e Hobbes em um tempo e lugar definidos, mas denunciando a referência indébita que dela faz Descombes.

Talvez o autor d’ O complemento do Sujeito não tenha ficado à vontade ao passar da análise da linguagem à abordagem da tradição filosófica da questão do sujeito. Pois as idas e vindas do autor ao seu ancoradouro da linguagem dificulta a compreensão do leitor, até mesmo de um leitor atento.

Contudo, o que um leitor atento não pôde deixar de perceber é que Descartes em suas Meditações metafísicas aponta para uma transparência da consciência a si mesma, de modo que posso duvidar de tudo, menos que “sou” quando penso. É possível levar a dúvida cartesiana mais longe e duvidar da minha própria consciência? Parece que pensadores como Marx, Nietzsche e Freud diriam que sim.

Por sua vez, mesmo que a consciência de si apareça deformada, falseada, ela ainda aparece para si mesma. Essa posição cartesiana é mantida mesmo que a consciência se engane a respeito dela mesma. É preciso deixar claro que existe uma diferença entre ter uma consciência falseada da própria consciência e ter uma consciência falseada de algum comportamento do agente. Digamos que alguém sonhe que está andando e se engane quanto a esse fato, isto é, julgue que realmente está andando. Esse engano específico não é ainda um engano da consciência em relação a ela mesma, mas ela se engana sobre um fato do mundo.

Para Descartes e seus herdeiros ortodoxos a consciência não se engana sobre ela mesma, na medida em que a consciência de andar, não é a consciência de um “agente da caminhada”, isto é, ela não é a consciência direta da ação de andar, mas uma experiência subjetiva. Quando existe uma reflexão sobre uma ação, isto é, quando um sujeito pensa sobre seu comportamento, então temos um sujeito de consciência. Descartes fez do sujeito da consciência o agente de pensamentos que serão, por sua vez, as causas desses movimentos.

Parece-nos que esse pequeno capítulo (XVIII) em que trata das filosofias da consciência tem o único objetivo de dizer: cartesianos ou não, os filósofos que se seguiram admitiram que “a consciência aparece para ela mesma”. Afirmação que por si só é problemática.

Aproveitando o ensejo do problema da “falsa consciência” V. Descombes rejeita a leitura que apresenta esse engano da consciência como “impressão de fazer algo quando não se faz”, pois, em primeiro lugar, o objeto de engano não deve ser o agente do comportamento, mas a própria consciência. Em segundo lugar, não faria sentido dizer que a consciência de andar não é dada ao sujeito como consciência de andar, pois ele não se perceberia andando, ele não teria a impressão de andar.

Tomando como exemplo os enganos de percepção relativos às coisas externas, o autor pretende ler essa “falsa consciência” de uma perspectiva diferente. Diz ele que a falsa consciência, por exemplo, uma consciência de estar vendo, se apresentaria sob a forma de se estar consciente de andar. Porém, isso continua difícil de aceitar.

Resta a Descombes voltar a seu ancoradouro da linguagem e operar uma crítica gramatical. Mas antes, por que não tentar encontrar respostas no interior da tradição filosófica mais uma vez. Esperamos ansiosamente por um posicionamento do autor.

Depois de exemplificar com uma parábola que a consciência de si não se trata de uma posição privilegiada do sujeito para com o conteúdo de suas intenções, portanto não sendo uma atividade refletida, chegamos a uma possível conclusão: “a consciência de si próprio a um agente é um conhecimento que ele tem de sua ação”. A partir de C. Taylor, podemos ver duas maneiras diferentes de conceber a filosofia da ação enquanto preocupada com a transparência da consciência para si mesma:

i. A consciência consiste na capacidade que alguém possui de determinar o que faz efetivamente.

ii. O sujeito não conhece sua ação, mas somente o seu desejo, sua experiência volitiva. (posicionamento cartesiano)

Wittgenstein, por outro lado, diz que a consciência transparente não é o ponto questionado. O que ele parece dizer é que partindo de uma verdade gramatical não há problemas em dizer que o sujeito das intenções sabe e pode declarar suas intenções, “embora isso não nos diga nada sobre o nosso espírito”.

Tendo em vista a dificuldade, não compreender os textos de V. Descombes presentes n’O complemento do Sujeito não é um fato extraordinário. A sua maneira de apresentar os problemas de filosofia em doses comprimidas causam freqüentes incompreensões. Por vezes não percebemos onde um argumento termina e outro começa. Além de nos parecer que alguns capítulos foram feitos de divisões de textos mais longos. Pois muitas vezes não conseguimos distinguir, no meio de tantos argumentos, o propósito do capítulo. É claro que é provável que o autor desse resumo crítico não seja o leitor ideal, nem o mais preparado dos leitores, mas a clareza que V. Descombes apresenta em sua discussão lógico-sintática se obscurece na tentativa de dialogar com a tradição filosófica. É, também, provável que essa dificuldade de compreensão resulte da dificuldade de sua empreitada.

A tentativa de mapear os argumentos filosóficos pelo menos nos ajuda a entender a novidade que foi a “descoberta” do sujeito. Ao ler alguns capítulos do livro já podemos perceber as diferenças da abordagem pré-moderna dessa idéia de sujeito que para nós já está tão arraigada na cultura, de modo que, teimamos em ver, muitas vezes, a mesma compreensão de sujeito na Antiguidade ou no Medievo. As diferenças entre as concepções pré-mordernas e a concepção moderna de sujeito saltam aos olhos. Sobretudo, saímos da leitura d’O complemento do Sujeito, como se aquilo que nos parece tão claro na experiência cotidiana: somos sujeitos, fosse, e talvez seja, um dos maiores problemas da filosofia.

E a despeito dos problemas de interpretação que em alguns momentos são possíveis na leitura de V. Descombes, ele parece ter realizado o propósito da filosofia, pois assim como Sócrates, o autor nos fez ver que aquilo que tomamos como certo e indubitável traz consigo uma gama de problemas que nos fazem entrar em perplexidade. Não devemos estranhar o desejo de matar o filósofo, pois é possível que esse desejo esteja justificado.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

IDEIAS CENTRAIS DO PRÓLOGO À GAIA CIÊNCIA

No prólogo à Gaia Ciência Nietzsche principalmente aborda a relação entre saúde e filosofia. Através de imagens discursivas como “a vitória sobre o inverno” (§ 1) ele fala biograficamente sobre a recuperação – ou apenas mais uma das recuperações – de sua saúde. O autor segue aprofundando a relação que uma filosofia pessoal tem com as próprias disposições corpóreas de um filósofo. Enquanto para alguns filosofar serve como um auxílio as suas deficiências, por outro lado, outros filosofam como conseqüência de sua “força e riqueza” (§2) (seria esse o caso de Nietzsche?)

A doença, a fraqueza do corpo não produz pensamentos diversos daqueles pensamentos refletidos em total equilíbrio e satisfação? Parece bastante sensato dizer sim. É assim que Nietzsche dirá que certos pensamentos sobre o além-mundo são inspirados pela doença e que “talvez os pensadores doentes predominem na história da filosofia” (§2). Deste modo, toda a tradição filosófica teria sido uma má-compreensão do corpo, talvez uma má leitura dos filósofos da sua própria compleição física e dos sintomas do corpo. Deveriam ter observado que tais pensamentos sobre o valor da existência, o além-mundo etc. eram apenas resultantes de se estar indisposto.

Por isso, Nietzsche diz que a questão do filosofar não é a “verdade”, mas a vida, a saúde, o poder, o futuro etc. Se me sinto doente e, portanto, mais cônscio de minha mortalidade, penso na eternidade, a anseio e desejo, não quero “a verdade”, mas sim, o meu consolo, meu apoio. Isso nos leva a pensar no esquecimento do corpo em detrimento do espiritual como coisa mais importante. E deve-se, assim, clarificar que não somos apenas “batráquios pensantes” (§ 3) e demonstrar a influência do corpo na filosofia, o qual não pode, de maneira nenhuma, ser separado da cabeça enquanto “sede” do pensamento.

Assim, uma nova postura se estabelece sobre a verdade, e tal postura só pode advir da experiência da doença e da fraqueza, pois dela “voltamos renascidos e de pele mudada”. “Já não cremos que a verdade continue verdade quando se lhe tira o véu”. (§4)

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Janela da alma


A visão, talvez o sentido mais sedutor de que dispomos, é tema do filme em questão intitulado Janela da alma. Partindo de uma compreensão da visão ou da vista enquanto capacidade instrumental orgânica do homem, passa-se a uma compreensão do olhar como uma maneira especial de visão, que não apenas apreende ou recepta imagens de um mundo externo a nós, mas que cria, modifica, enfim, transforma a realidade dita objetiva.

Os vários comentários de pessoas deficientes visuais corroboram a perspectiva de que a visão não é apenas um recolhimento de dados sensoriais que recebemos de fora, mas que nosso olhar é condicionado por sentimentos e emoções que geralmente não ligamos ao fato visto. A deficiência visual evidencia que a realidade não é só o que percebemos, mas vai muito além disso. Será que o visualmente são vê a realidade exatamente como ela é? E será que quando selecionamos o que vemos pelo grau de importância que lhe damos não estamos influenciando na realidade que vemos? As respostas para ambas as perguntas são afirmativas. Sim, modificamos a realidade em dois níveis, um nível particular, em que as emoções e sentimentos alteram o olhar de um indivíduo e, num nível universal, em que todos os homens pelo fato de compartilharem o mesmo aparato mental criam uma realidade à maneira dos homens.

O artista está sempre habituado a este olhar particular e o exprime de maneira que seu mundo de sensações e impressões é exposto a um espectador que descobre no olhar do artista que seu próprio mundo não é tão objetivo quanto parecia. O artista desperta no espectador a consciência de que seu olhar é também específico e modificador da realidade.

Até mesmo um cego é detentor de um “olhar” particular, e que, contraditoriamente pode ver mais que uma pessoa de olhos totalmente sadios. Em nossa atual sociedade em que imagens assaltam a nossa vista, já não olhamos mais nada, apenas vemos cegamente uma multiplicidade indistinta de cores e formas.

sábado, 20 de agosto de 2011

Introdução à Fenomenologia do Espírito


Algum tempo atrás, escrevi sobre meu primeiro contato com a Fenomenologia do Espírito de Hegel e... Bem, continuo, ingenuamente, tateando a compreensão dessa obra terrível e maravilhosa. O prefácio dessa obra continua envolto de mistério (para mim), mas agora com uma percepção mais clara de alguns pontos salteados, e posso, a despeito da dificuldade de interpretação, ainda me deleitar com passos de grande inspiração e beleza. Entretanto, o que nos interessa aqui é a introdução.

Hegel inicia a introdução da Fenomenologia do Espírito fazendo uma crítica a concepção de conhecimento que pressupõe que para este seja necessário um instrumento ou meio. Ou seja, Hegel está criticando a compreensão natural de que é preciso, para se alcançar o saber, de um instrumento que nos ponha em contato com a verdade ou, por outro lado que, para esta alcançar, seria preciso considerar um meio. Não obstante, tal compreensão e os problemas que decorrem de sua presuposição não passam de engano e por um medo da verdade que se faz passar por zelo dela. O saber não se atinge estaticamente através dos conceitos fixos de sujeito em oposição a objeto. Mas o saber se dá no puro exercício cinético do saber.

A ciência nada mais é que a "ciência da experiência que faz a consciência" (§ 36). É o movimento do espírito que vai abrindo caminho em direção a verdade, passando pelas etapas e figuras da alma individual ao mesmo tempo em que é Espírito da história. Portanto, movimento em duplo sentido.

Percebemos que o movimento do Espírito é impulsionado para outras etapas de desenvolvimento quando consideramos a medida de comparação entre o objeto para-nós e o objeto em si-mesmo. A medida de comparação está na consciência nela mesma e não fora dela. Quando a consciência "enxerga" que aquilo que ela imaginava ser em-si no objeto é apenas a maneira como ela o apreende e, portanto, um para-si e não em si, então, o que antes era limitação, que era em si, agora é visto somente como para-si, e outro horizonte para ser alcançado se coloca, pois o em-si se transmutou em para-si, surge então uma nova figura de consciência.

Assim, esse caminho de etapas e mudanças contínuas só se conclui quando o objeto se iguala ao seu conceito, porém concluir não significa que tudo não se repetirá novamente, pois a "saudade" do espírito o leva a percorrer novamente as etapas pelas quais antes passou.

Referências:
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad.: Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O par'hemás epicúrio: a evidência da responsabilidade por uma ação






Trabalho publicado nos anais da XIX Semana de Humanidades-UFRN:
Skipp Redirect 2.8.0026
v2.8.0029
disponível

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Download: Sobre a Geração e a Corrupção de Aristóteles






Para os estudantes de filosofia antiga metidos a filólogos, posto o link de uma obra de Aristóteles que não pode faltar na sua biblioteca de arquivos nem na sua xérox-oteca ou no seu amontoado de papéis que sua mãe odeia: Sobre a Geração e a Corrupção, inclusive com marcação e tudo que tem direito.

domingo, 19 de junho de 2011

A tecnologia

Acredito que a tecnologia é sempre sobre-determinada sócio-economicamente. Não me esqueço da impressão que tive quando criança, no final dos anos 80, quando me deparei com meu pai diante de uma tela na qual apenas com o toque dos dedos era manipulada. Nunca vira nada parecido em nenhum lugar e não era à toa que o único lugar em que a vi era em um banco. Hoje vemos computadores a torto e a direito, de todos os tamanhos e para todos os gostos, mas naquela época era diferente. Será que foi casual ter visto pela primeira vez em um banco um computador de ponta? Será que era para o bem da população? Atualmente as greves de banco não têm mais a força que tinham no passado, os funcionários são quase dispensáveis, pois até mesmo de casa se podem fazer consultas e transações bancárias.

Por que o metrô, o trem bala e o celular? Pergunte a um executivo japonês de meia idade se todo esse progresso melhorou sua vida. A tecnologia tem invadido tanto as nossas vidas e alterado o nosso modo de viver que parece que tudo está fora de controle. É aí que entra a indústria do lazer para nos livrar do estresse do dia-dia. Todas essas tecnologias são inteiramente interessadas. Elas visam a maximização do lucro ao menor custo possível.

Não acredito na neutralidade da tecnologia, pois se realmente fosse neutra, esperaríamos confiantes pelo desenvolvimento de energias limpas e renováveis. Imagine você abastecendo seu carro com lixo orgânico, de duas uma, ou nunca isso acontecerá ou o preço do lixo aumentará substancialmente e o Brasil finalmente será o país do futuro com todo esse nosso potencial acumulado nos lixões.

A discussão sobre a destruição do meio ambiente pela intervenção tecnológica do homem veio por às claras o fato de que nem mesmo iminentes ameaças são motivos para interromper o impulso do capitalismo na tecnologia.

Hoje somos forçados a crer que precisamos mais que uma mesa e um banquinho, como precisou Robinson Crusoé para se sentir humano e civilizado, longe disso, hoje precisamos de um notebook, uma TV de LCD ou LED, um microondas, um Tablet...

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O prometer em falso na FMC de Kant

À questão: posso prometer em falso quando me encontro em dificuldades? Kant distingue os dois sentidos que a questão pode ter: se é prudente ou se é conforme ao dever prometer em falso, enfatizando que essas duas abordagens não são a mesma.

A primeira abordagem, que é mais comum, pergunta-se se é prudente prometer em falso, considerando as conseqüências, visto que da mentira pode decorrer problemas maiores que aquele que se quer evitar. Por exemplo, é prudente observar que perderei todo crédito nas minhas futuras promessas, de modo que a confiança dos outros em mim será profundamente abalada. Em última instância, seria muito mais prudente agir segundo uma máxima universal e nunca mentir.

Entretanto, agir tendo em vista uma máxima universal é totalmente diferente de agir através de uma consideração prudencial das conseqüências de minha ação, pois:

“enquanto no primeiro caso o conceito da acção em si mesma contém já para mim uma lei, no segundo tenho antes que olhar à minha volta para descobrir que efeitos poderão para mim estar ligados à acção”

Observamos, então, que o sentido prudencial em que a questão é posta se relaciona com o agir motivado por outros móbiles que não o respeito à lei moral. Neste caso, podemos ver que, considerar as conseqüências visa à obtenção da felicidade individual. Mas qual o grande problema de agir tendo em vista a felicidade? O problema é que na medida em que uma situação em que observemos que mentir não nos traz problemas futuros mentiremos sem pestanejar.

Para resolver o problema de forma mais rápida e segura Kant nos diz que basta nos perguntarmos se poderíamos querer que a nossa ação viesse a se converter em lei universal. Não poderíamos tornar lei que todos possam mentir quando se encontram em apuros, pois ninguém acreditaria mais em ninguém e não poderia haver mais promessa alguma. E, assim, a minha máxima se autodestruiria.

Porém alguém poderia dizer: Kant não está considerando as conseqüências da ação de prometer em falso, de modo que ela seria também uma consideração apenas prudencial? A resposta para isso é o fato de que se minha ação é motivada por fatores que não a lei moral, minha ação não será constante, pois minhas bases morais serão frágeis. Enquanto que agir segundo e somente pela lei moral sempre produzirá uma ação moral. O modo como Kant escreve pode confundir o leitor nesse ponto, mas que é claramente evidente diante da leitura de toda a seção. Considerar as conseqüências, nesse caso, se limita a questão de saber se prometer em falso numa situação de dificuldade é ao menos conforme ao dever.

Referencias bibliográficas

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007

domingo, 15 de maio de 2011

1ª Seção da FMC


Os exemplos citados por Kant na primeira seção (exemplo do merceeiro, da conservação da vida, do ser caritativo etc.) cumprem o propósito de explicitar a ideia kantiana acerca do que configura a ação moral. No início da referida seção Kant se utiliza do conceito comum de “Boa vontade” para demonstrar que a Ética dos filósofos antigos e, sobretudo, a ética teleológica de Aristóteles, falhavam na medida em que reconheciam na virtude e na felicidade como o bem maior a motivação para a ação moral. Pois para Kant só à boa vontade pode ser dado o status de “boa em si mesma”.

Porém, diferentemente dos antigos, Kant coloca na razão o móbil da boa vontade, uma vez que argumenta que a função da razão prática, na medida em que é um órgão como todos os outros, é produzir uma boa vontade. Ao contrário do que se poderia pensar, a razão não tem a função de nos assegurar a felicidade, porém esta é claramente uma competência dos sentidos. Ademais, segundo Kant, a razão quando encarregada dessa função produz mais facilmente infelicidade do que felicidade. Entretanto, a “boa vontade é condição indispensável para o próprio fato de sermos dignos da felicidade”.

Kant passa, então, do conceito do senso comum de boa vontade para o conceito mais aprofundado de “Dever”, o qual contém em si o conceito de boa vontade. E pensa nas possibilidades de se caracterizar uma ação, das quais apenas uma é verdadeiramente uma ação moral: a ação por dever. De modo que Kant nos apresenta as ações:

· Contrárias ao dever: dessas Kant não irá se ocupar na FMC dado à sua facilidade de ser reconhecida, pois uma ação contrária ao dever é uma ação imoral.

· Conformes ao dever: as ações conformes ao dever são aquelas que parecem ações morais, feitas por dever, mas que no fundo foram feitas por inclinação imediata ou por qualquer outra tendência.

· Por dever: São àquelas ações que, como Kant depois dirá, são feitas por puro respeito à lei moral, ou seja, ações que têm como motor não as suas conseqüências, mas o princípio da lei moral.

É para esclarecer essa relação entre a ação moral e seus motivadores que Kant se serve de seus exemplos. Diferentemente do que normalmente se pensa, Kant quer mostrar que uma ação não pode ser moral se ela se fundamentar sobre fatos contingentes como nossas experiências sensíveis. Assim a moral kantiana exclui todo o âmbito sensível no propósito de fundamentar um princípio seguro. Pois o motivador de uma ação moral não pode ser seu objeto, mas o princípio do dever.

Tendo em vista o exposto acima, Kant se vale, a título de ilustração, do exemplo da conservação da vida, pois esta, embora seja um dever, não é, de fato, seguida por dever, mas pelo fato de todos os homens, no mais das vezes, terem instintivamente uma inclinação para se manterem vivos. Segue-se que essa ação é conforme ao dever e não por dever, ou seja, conservar a vida na maioria das vezes é agir conforme ao dever por inclinação. Entretanto, a máxima de um homem tem, claramente e verdadeiramente, conteúdo moral no que tange a conservação da vida quando ele já não tem mais inclinação imediata para a vida, ou seja, quando ele já não deseja mais viver, mas, contudo, permanece vivendo por dever.

Mas, por que o autor da Fundamentação da Metafísica dos Costumes insiste em não depositar o princípio da ação moral no âmbito sensível? Reflitamos no exemplo acima. Se a ação moral de conservar minha vida dependesse do amor que tenho a ela ou do desejo profundo que tenho em continuar vivendo; e ainda, se a conservação da vida dependesse da felicidade que sinto ou dos eventos contingentes que perfazem o ato de viver, então no momento em que não me sentisse feliz e eventos desagradáveis acontecessem ao ponto de me tirarem o gosto de viver, nesse momento tiraria minha própria vida. As conseqüências de fundamentar uma moral sobre a esfera da sensibilidade só evidencia a instabilidade dessa moral.

A ação moral deve ter subjetivamente, por um lado, por princípio o respeito à lei moral e, por outro, a própria lei objetiva que se manifesta através do imperativo categórico, a saber: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universa”l. Agindo por respeito à lei moral agiremos por dever e seremos talvez felizes, mas se não formos, seremos pelo menos os que deveriam ser.