terça-feira, 20 de novembro de 2012

FUTURO, DESTINO E NECESSIDADE: JARDIM E LICEU CONTRA OS MEGÁRICOS

Renato dos Santos Barbosa
Resumo: Afirmar que o futuro está determinado é negar, consequentemente, o poder de escolha e decisão dos homens. Esse é o motivo da crítica de Epicuro aos megáricos e a toda forma de discurso que anuncie a onipotência da necessidade. Aristóteles em seu Sobre a interpretação e Epicuro nos poucos textos de que dispomos criticam a opinião do megárico Diodoro Cronos de acordo com o que consta no Sobre o destino de Cícero.
Palavras-chave: Futuro, necessidade, Epicuro, Aristóteles, Diodoro.
Dentre as advertências iniciais de Epicuro ao seu discípulo Meneceu há uma que merece atenção especial por ser muito pontual e facilmente passar despercebida pelo leitor. Trata-se da compreensão epicurista dos eventos futuros. Diz Epicuro: “Devemos lembrar-nos de que o futuro não é inteiramente nosso, de tal maneira que não devemos esperar a sua realização de qualquer modo, nem que não se realize de modo algum” (DL, X, 123). A despeito do fator terapêutico indiscutível que essa visão produz, na medida em que nos torna mais atentos ao presente e ao que depende de nós, é preciso destacar a relação existente entre esta advertência de Epicuro e as opiniões que circulavam em sua época. Nomeadamente, não podemos falar desse assunto sem trazer à baila as opiniões de Aristóteles no Sobre a interpretação e as de Diodoro Cronos[1] veiculada através do Sobre o Destino de Cícero.
Esperar que tal ou tal coisa aconteça no futuro tem a ver com a possibilidade de predicação de verdadeiro ou falso em relação à proposições sobre eventos futuros. Afirmar, opostamente à Epicuro, que o futuro já está determinado[2], valendo-se do princípio de contradição, coloca-nos junto à opinião de Diodoro Cronos. Por outro lado, afirmar que não podemos predicar verdade ou falsidade de eventos futuros nos coloca na esteira das opiniões de Aristóteles e Epicuro. Comecemos, portanto, com a perspectiva epicurista.
Antes de tudo, para o Mestre do jardim, somos livres e, portanto, detentores do poder de escolha e deliberação. Sem isso não haveria motivo para a filosofia nem para o aperfeiçoamento ético do homem. Por isso qualquer discurso que, para a sua aceitação, pressuponha a ausência da liberdade humana deve ser prontamente rejeitado. Antes um relato mitológico que um pretenso saber que nos faz apáticos. Diz Epicuro:
Seria melhor, realmente, aceitar os mitos sobre os deuses do que aceitar ser o escravo do destino adotado pelos filósofos naturalistas, pois os mitos têm como se fosse impressa em si mesmos a esperança de que os deuses podem ceder às preces e homenagens que lhe são prestadas, enquanto o destino dos filósofos naturalistas é uma necessidade inflexível. (DL, X, 134)
Quais seriam a filosofia e os filósofos que Epicuro acusa? Segundo Salem, “Não é impossível pensar, num primeiro momento pelo menos, no necessitarismo absoluto de Diodoro Cronos, O Megárico”(SALEM, 1998, p. 63). Ademais, constava no corpus epicureum, segundo nos conta Diôgenes Laêrtios, um escrito intitulado Contra os Megáricos (DL, X, 27). Infelizmente as intempéries históricas nos impediram o acesso à maioria dos textos de Epicuro; e com este texto em particular não foi diferente. Em todo caso, o que Epicuro criticava na filosofia da escola de Mégara e, sobretudo, no discurso de Diodoro Cronos?
            Cícero nos conta em seu texto Sobre o Destino a opinião de Diodoro:
Agrada então a Diodoro somente poder acontecer aquilo que ou seja verdadeiro ou haja de ser verdadeiro. Esse ponto atinge esta questão: nada que não haja sido necessário acontece, e, tudo o que possa acontecer, isso ou já é ou haverá de ser; e não mais podem ser alteradas de verdadeiras em falsas estas coisas que haverão de ser, tanto quanto aquelas que foram feitas. Mas a imutabilidade nos fatos passados é evidente. (De Fato, IX, 17)[3]
Olhando para o passado, Diodoro identifica o impossível com o falso, de modo que o que aconteceu necessariamente deveria ter acontecido. Assim, projetando essa necessidade para o futuro, pensa que como o impossível não deixa de ser impossível, no futuro só o possível acontecerá, ou seja, apenas as proposições verdadeiras acontecerão, enquanto as falsas permanecerão impossíveis. Em outras palavras, o futuro já está determinado de antemão. Diodoro, desse modo, estende a necessidade lógica[4] às ações humanas, transformando-a num destino inflexível.  
Contra esse modelo de discurso nos restaram algumas passagens de Epicuro das quais elegemos aqui uma das mais significativas de seu pensamento:
Aquele que diz que tudo acontece por necessidade não tem nada a reprovar àquele que diz que tudo não acontece por necessidade, porque diz que isso mesmo[5] acontece por necessidade (SV, 40).
Ora, por qual motivo o partidário do necessitarismo[6] discutiria com seu opositor? A menos que acreditasse poder demover o seu interlocutor de sua opinião não deveria apregoar o domínio da necessidade, pois se a oposição existe, ela também deveria ser necessária e inamovível. Assim, o defensor da onipotência da necessidade entra em contradição com seus atos, produzindo apenas uma verbosidade vã. A opinião de Epicuro está fundamentada nas nossas experiências de escolhas e da subsequente responsabilidade que resulta delas:
(...) a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso é inconstante, e as coisas que dependem de nós são livremente escolhidas e são naturalmente acompanhadas de censura e louvor. (DL, X, 133)
A partir dessa evidência, a saber, que há um espaço de ação que concerne apenas ao homem e suas escolhas (par’hemás), Epicuro explica sua posição no âmbito da physiología (investigação da natureza)[7]. Epicuro pensa, como nos conta Cícero, “que há diferenças entre causas fortuitamente anteriores e causas que encerram em si uma eficiência natural” (De Fato, IX, 19). Ou seja, o acaso também está presente na cosmologia epicurista, de modo que nem tudo acontece por necessidade, e é justamente o acaso que quebra as cadeias causais da necessidade e abre as portas para o espaço de ação livre e calculada dos homens.
Assim, os eventos futuros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, pois, em primeiro lugar isso geraria uma necessidade inflexível, consequência que é contraditada pela experiência humana e em segundo lugar, como nos mostrará Aristóteles, só podemos predicar verdadeiro ou falso de uma proposição quando o acontecimento a que elas se referem estiver atualizado.
Aristóteles pensa da mesma maneira que Epicuro no que concerne às consequências de predicar verdade ou falsidade de proposições sobre o futuro. No Sobre o Destino Epicuro, segundo Cícero, diz que “(...) aqueles que dizem ser imutáveis as coisas que estejam para existir, e não poder o verdadeiro futuro converter-se em falso, não confirmam a necessidade do destino, mas só interpretam o sentido das palavras”. (De Fato. IX, 20) Além disso, acreditamos que Aristóteles diria que os Megáricos interpretaram mal os sentidos das palavras. Assim como Epicuro, Aristóteles, antes dele, já tinha como evidente a nossa capacidade de escolha e deliberação e também conhecia os riscos dos discursos da necessidade: “Não podemos sustentar, todavia, que nem uma nem outra proposição seja verdadeira. Por exemplo, não podemos sustentar que um certo evento se realizará nem que não se realizará no futuro”, pois, se fosse possível, tudo estaria determinado necessariamente e “Não haveria necessidade de deliberar ou ter cuidados se conjeturássemos que uma vez adotada uma particular linha de conduta, um certo resultado se seguiria e que, se não o fizéssemos, não se seguiria”(Arist. De inter. IX, 18b1, 16-20 e 30-35)[8]
Após constatar a influência do elemento humano na realização do futuro, Aristóteles pensa que o futuro não pode estar determinado, uma vez que o que é possível está aberto à contingência.  Aristóteles exemplifica com o clássico exemplo da batalha naval:
Por exemplo, uma batalha naval amanhã necessariamente ocorrerá ou amanhã não ocorrerá uma batalha naval. E assim, como a verdade das proposições consiste na correspondência com os fatos, fica claro, no caso de eventos nos quais se encontra contingência ou potencialidade em sentidos opostos, que as duas proposições contraditórias tem o mesmo caráter. (Arist. De inter. IX, 19 a, 30-35)
Potencialmente a batalha naval poderia ocorrer ou não ocorrer amanhã, pois o que está em potência admite o ser e o não ser sem, no entanto, ferir o princípio de não contradição. A verdade de uma proposição depende, pois, de sua adequação ao fato, atualizado ou realizado que ela descreve. Enquanto falarmos de potencialidade, estaremos considerando que o futuro está aberto às contingências.
Portanto, tanto Aristóteles como Epicuro rejeitam a possibilidade de predicar verdade ou falsidade sobre o porvir, negando o destino e o domínio absoluto da necessidade. O futuro não está totalmente sob o nosso domínio, mas também não independe de nossas escolhas. Existe acaso, necessidade, mas também existe o que nos concerne. Aceitar a opinião de Diodoro é aceitar a apraxia, é saber e admitir que nossas ações não fazem diferença no mundo. 

Bibliografia
ARISTÓTELES. Órganon. Trad. Edson Bini. Bauru -SP: EDIPRO, 2010.
CÍCERO. Sobre o destino. Trad. José Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1988.
HADOT, P. O que é filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
MOREL, P.-M. Atome et nécessité : Démocrite, Épicure, Lucrèce. Paris : Presses Universitaires de France, 2000. 
SALEM, J. Démocrite, Épicure, Lucrèce : la vérité du minuscule : Encre Marine, 1998. 









[1] Filósofo da escola de Mégara (século IV a.C)
[2] Deste ponto já podemos notar que o assunto se une a outro também muito controverso: o tema do destino.  
[3] Para esta obra utilizamos: CÍCERO. Sobre o destino. Trad. José Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.
[4] Morel (2000 p.12) afirma sobre a necessidade que: “Nós podemos distinguir três (sentidos) gerais: a necessidade como princípio lógico, como princípio cosmológico e como destino”.
[5] “O fato de dizer que tudo não acontece por necessidade”, explicação de Conche (1977, p. 257).
[6] Para utilizar o termo de Salem (1998, p. 63)
[7] Pode nos parecer estranho que a fundamentação física venha depois da constatação de como vivemos e nos portamos, no entanto, segundo nos diz Hadot (1999), essa era a forma em que se processava a filosofia dos gregos, uma vez que a justificativa filosófica viria depois da escolha do modo de vida: “(...)Essa opção existencial implica, por seu turno, certa visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico revelar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa representação do mundo. O discurso filosófico teórico nasce dessa opção existencial inicial e reconduz, à medida do possível ou por sua lógica persuasiva, à ação que quer exercer sobre o interlocutor; ele incita mestres e discípulos a viver realmente em conformidade com sua escolha inicial ou, ainda, conduz de alguma maneira à aplicação de um ideal de vida” (HADOT, 1999, p. 18)
[8] Para esta obra utilizamos: ARISTÓTELES. Órganon. Trad. Edson Bini. Bauru -SP: EDIPRO, 2010.