quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A CONSCIÊNCIA DE SI, EM E PARA SI NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO DE HEGEL


1 INTRODUÇÃO

Seguindo os caminhos sinuosos “da ciência da experiência que faz a consciência”, pretendemos investigar a transição da consciência de si enquanto mera igualdade consigo mesma ou, como dirá A. Kojève, como “sentimento de si” (2002, p.11), em direção à verdade da certeza de si, momento em que a consciência não é mais apenas para si, mas também é para si como verdade, isto é, quando ela se torna em si e para si.

É inevitável que nesse percurso tenhamos que nos deparar com a célebre descrição imagética da Dialética do Senhor e do Escravo. Através dela perceberemos a impossibilidade de se dissociar subjetividade de intersubjetividade ou, dito de outro modo, perceberemos a irrealidade da subjetividade no sentido legado pela tradição cartesiana.

O nosso móbil principal nesse artigo é a questão: como posso estar seguro do conhecimento desse Ser que Eu sou?

2 A transição da imediatez da consciência de si para a certeza da verdade de si mesmo.

Em linhas gerais podemos afirmar que a experiência com o mundo exterior conduz a consciência para a descoberta de si mesma, como explica P. Meneses: “[...] a consciência é movimento de retorno, a partir do ser percebido e sentido, sobre si mesma.” (1992, p. 56). As constantes fugas da realidade à sua apreensão constatam que “o mundo não se deixa dominar” (KONDER, 1991, p. 30), momento em que se dá a emergência da consciência de si.

Não obstante, ao se colocar a si mesmo como objeto, o Eu ou a Consciência se reduz a excluir tudo o que não seja Eu, fechando-se em uma “tautologia sem movimento” (HEGEL, 2008, § 167), reduzindo-se então ao “Eu sou Eu” (Ich bin Ich). Assim, o objeto marcado com o sinal do negativo, ao ser suprimido pela consciência igualadora do não-igual, “retornou sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também [fez o mesmo]” (HEGEL, 2008, §168). Ou seja, a consciência se fecha sobre si por não conseguir se satisfazer no Outro, pelo fato mesmo de dissolver o Outro em si mesma, mantendo a igualdade estática de sua identidade consigo. Portanto, a consciência se mostra como o puro vácuo abismal do desejo.

Entretanto, a consciência de si não pode suprimir o objeto na medida em que ele retorna sobre si em sua independência, gerando, assim, um eterno desejar o Outro, impedindo a satisfação da consciência. Esta só teria satisfação se o objeto operasse a negação em si mesmo, fazendo nele mesmo o que a consciência faz sobre ele, ou seja, sendo para a consciência o que ele é em si mesmo. “Mas quando o objeto é em si mesmo negação e nisso é ao mesmo tempo independente, ele é consciência” (HEGEL, 2008, §175).

Desse ponto em diante começamos a compreender a transição pela qual passa a consciência de si em sua imediatez estática. Esta é de tal modo diferente do estágio posterior que A. Kojève a denomina, justamente com a intenção de elucidar a diferença, sob a alcunha de “sentimento de si”. Não se pode atribuir ainda, nesse momento, o status de consciência de si em e para si, visto que não se alcançou ainda a si mesma como verdade, isto é, não se pode falar ainda na verdade da certeza de si mesmo e, consequentemente, não podemos estar seguros do que somos. É justamente aqui que o desejo, que antes se relacionava com os objetos, com a natureza, com a vida, enfim, com o mundo externo, direciona-se para um outro desejo, isto é, para uma outra consciência de si também negadora do dado. Desejamos o desejo do Outro e só nele gozamos a satisfação de nosso desejo. Como diz Hegel: “a consciência de si só alcança sua satisfação em uma outra consciência de si” (2008, §175)

Por conseguinte, a consciência de si só pode efetuar essa transição de seu estado apenas para si ou, como queria Kojéve, do sentimento de si em direção à consciência de si em e para si se colocar o objeto no Outro, mas, agora, em um Outro que também é um Eu, consciência negadora. Assim, “[...] a consciência de si é só para-si e em-si quando assim é reconhecida por outra consciência de si”. Adentramos, então, numa das passagens mais conhecidas e trabalhadas da Fenomenologia do Espírito: a dialética do senhor e do escravo[1].

3 A perversidade da Dialética do senhor e do escravo

A subjetividade só se põe em uma relação intersubjetiva. Não podemos estar certos de nós mesmos sem essa relação com o Outro humano enquanto humano. E a maneira pela qual Hegel aborda a questão revela o lado perverso[2] desse processo em que a consciência se faz. Deixemo-nos levar, então, pelo processo de obtenção da consciência de si em e para si.

Lembremos que na relação sujeito-objeto em que a consciência suprimia em si o objeto, ela estava ensimesmada, não podendo estar certa de sua verdade enquanto consciência. Pois “a consciência de si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido” (HEGEL, 2008, § 178). Esse reconhecimento se dá na medida em que a consciência suprime o Outro e ao suprimi-lo adquire a certeza de sua essência vendo a si mesma no Outro e, em segundo lugar, suprimindo a si mesma no Outro. É, pois, um suprimir de duplo sentido. Mas ao fazer isso a consciência deixa o outro livre novamente. Devemos entender que esse movimento se dá de ambas as partes, considerando duas consciências de si agindo simultaneamente.

Como foi dito, a consciência suprime a si mesma por meio do Outro, este se apresenta como o termo médio de um silogismo que se conclui com a supressão da consciência pela própria consciência, como se ela fosse objeto para si mesma. Mas esse enfrentamento é, inicialmente, semelhante à relação com os objetos, de modo que essas consciências ainda permanecem “imersas no ser da vida” (HEGEL, 2008, §185), certas apenas a respeito de si, mas não a respeito do Outro. A arena está montada e o embate se anuncia. Pois uma consciência quer que a Outra a reconheça da mesma maneira que ela está certa de si, enquanto, por outro lado, a outra consciência quer o mesmo, confrontando-se em uma “luta de puro prestígio” (KOJÈVE, 2002, p. 22).

As duas consciências de si que se confrontam desejam que a certeza que elas têm de si mesmas sejam elevadas à verdade e, para isso, é preciso o reconhecimento do Outro, ou seja, aquilo que acreditamos ser é apenas uma certeza vazia até o momento em que aquilo que estamos certos de ser se confunda com aquilo que o Outro está certo de que somos. Por isso desejamos o desejo do outro. Desejamos ser desejados pelo Outro, na medida em que queremos ser reconhecidos como desejáveis. Mas, para tal, é necessário arriscar a vida em sua imersão animal, “portanto, a relação das duas consciências de si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma ou outra através de uma luta de vida ou morte” (HEGEL, 2008, §187). Aquele que desprezar a sua vida se sagrará vencedor dessa luta, pois afirmou sua certeza acima de sua condição natural. Por outro lado, o perdedor, que é tal porque não arriscou sua vida, não alcançou o reconhecimento, mas, temendo, cedeu à dominação do senhor. Trabalhando os objetos o escravo os transforma para seu senhor, de modo que este consegue o que antes não conseguia: gozar a plena satisfação de seus desejos, pois “[...] para o senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem a ser como a pura negação da coisa, ou como o gozo – o qual lhe consegue o que o desejo não conseguia: acabar com a coisa, e aquietar-se no gozo.”

Entretanto, a verdade de si mesmo que o senhor encontrou por meio da consciência escrava “não corresponde ao seu conceito” (HEGEL, 2008, §192), pois o reconhecimento que advêm de uma consciência dependente não é reconhecimento verdadeiro, nem serve de parâmetro para a afirmação da certeza de si como verdade. Pois “[...] esse reconhecimento é unilateral, porque ele não reconhece a realidade e dignidade humanas do escravo (...) ele é reconhecido por alguém que ele não reconhece” (KOJÈVE, 2002, p. 23). Eis, então, o lado perverso, o lado trágico da dialética do senhor e do escravo: a posição privilegiada não é a do senhor, mas a do escravo. Logo, aquilo que era almejado pelo senhor: ser consciência em e para si, só pode ser alcançado pelo escravo através do medo e do trabalho. O escravo é o único nessa relação que pode ser reconhecido por alguém que ele mesmo reconhece. Mas para isso, ele deve transcender o seu estado de consciência ainda limitado. Hegel descreve a possibilidade dessa transição por meio do medo e do trabalho:

No senhor, o ser para si é para o escravo um Outro, ou seja, é somente para ele. No medo, o ser para si está nele mesmo. No formar, o ser para si se torna para ele como o seu próprio, e assim chega à consciência de ser ele mesmo em si e para si. (HEGEL, 2008, §196)

É através do medo e do trabalho que o escravo toma consciência de si. A supressão de si mesmo que se dá no sentimento de medo diante do senhor é fator determinante para essa transição de sua realidade antes presa ao ser natural. A construção da consciência de si acontece ao transformar os objetos naturais através do trabalho formador, de modo que, ao transformar a natureza sem a consumir a consciência escrava se desapega de sua realidade biológica. É aí, então, que se torna possível a coincidência do ser para si com o ser em si, uma vez que ela se reencontra de si por si mesma por meio do trabalho formador e “vem a ser sentido próprio” (HEGEL, 2008, §196)

4 CONCLUSÃO

No caminho em direção a certeza da verdade de si mesmo há uma pedra, uma pedra sem a qual o fim almejado não se alcançaria. O percurso pelo qual nos tornamos certos de nós mesmos não é direto e sem desvios, nem poderia ser melhor e mais fácil do que é, uma vez que seus declives e aclives são constitutivos do caminho mesmo. Não podemos pensar subjetividade sem intersubjetividade. A não ser que nos contentemos com um Eu sou Eu vazio de certezas, o qual sempre carregará consigo a angústia advinda do fato de que talvez não sejamos o que pensamos. Mas todos os dias uma arena se forma e o embate se anuncia.

REFERÊNCIAS

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. trad. Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. Petrópolis RJ: Vozes/ Ed. Universitária Sao Francisco, 2008.

KONDER, L. Hegel, A Razão Quase Enlouquecida. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991.

KOJÈVE, A. Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: CONTRAPONTO EDITORA/Ed. UERJ, 2002.

MENESES, P. Para ler a Fenomenologia do Espírito, roteiro. São Paulo: EDIÇÕES LOYOLA, 1992.



[1] Parágrafos 178 a 196 na tradução de Paulo Meneses, 2008

[2] Cf. Konder, 1991.