segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Resumo crítico acerca de capítulos escolhidos do livro “O complemento do Sujeito” (XVII ao XX) de V. Descombes


Após estabelecer referências no campo da linguagem acerca da questão filosófica do sujeito, V. Descombes experimenta aplicar o resultado dessa abordagem sobre os modos pelos quais a tradição filosófica tratou a questão do sujeito. Considerando que essa questão tem certidão de nascimento, por que não começar por aquele que marcadamente se reconhece como o iniciador dessa tradição – Descartes – e que “nos fez sujeitos de nós mesmos”?

V. Descombes esclarece que podemos encarar o argumento do Cogito cartesiano sob duas leituras distintas. A primeira entende que o objetivo de Descartes era provar a existência da alma imaterial, sendo, portanto de cunho “realista” ou “substancialista” (e nesse sentido nem ao menos poderíamos estabelecer Descartes como o ponto de partida da discussão sobre o sujeito) e a outra, como seria necessário a um herdeiro cartesiano, encara o cogito como forma de assegurar uma existência como sujeito e não como substância imaterial (alma). Os defensores dessa última posição afirmam que se Descartes utilizasse o nosso vocabulário, já destituído de uma linguagem escolástica, ele utilizaria o termo “sujeito” em detrimento do termo “alma” que ele, de fato, preferiu.

Não obstante, as duas posições encontram problemas, visto que inferir do “Eu penso” que “sou uma alma imaterial” é concluir de algo verdadeiro uma afirmação da qual não podemos obter provas e, por outro lado, derivar da afirmação “Eu penso” que “Eu sou meu ato de pensar” é mais absurdo ainda. Pois, afirmar que ao pedido: “Queira pensar em algo” eu me ponha a existir magicamente ou, dito de outra maneira, presumir que eu tenha o poder de entrar e sair da existência a cada vez que tenha vontade, parece ser contra-intuitivo. Aceitar isso poderia implicar em admitir que cada ato de pensar produziria um sujeito distinto do anterior, a menos que os atos de pensar fossem apenas manifestações descontínuas de um mesmo ato de pensar.

Entretanto, quando se diz que o sujeito é o sujeito do pensamento não se quer dizer “nada do sujeito do ato de pensar, senão que ele é o sujeito desse ato”. Ou seja, não se quer estabelecer o conteúdo desse sujeito, mas apontar que o ato de pensar pressupõe um sujeito pensante. O sujeito de forma alguma é identificado com um verbo, mas com um primeiro actante do qual segue o ato de pensar.

Por outro lado, Nietzsche colocou a dúvida a respeito do verbo “pensar” mais ou menos nestes termos: por que ele não pode ser visto como os verbos “chover” ou “nevar”? Será que pensar implica na existência de um sujeito ativo do pensamento? Ele desloca a questão, pois em vez de se perguntar: quem é o sujeito (ativo) do pensamento? Em vez disso, ele se pergunta: Eu sou ativo ou não quando penso? A questão, como em Éttienne Balibar, passa a ser a do estatuto actancial do verbo. A preocupação agora não é mais com um sujeito, mas com um agente.

Especulações filosóficas a parte, dirá Descombes que “partindo do pressuposto de que existe tal conexão predicativa”, ou seja, que o verbo “penso” exige um sujeito actancial, “essa questão do subjectum pode ser colocada”, isto é, podemos manter a necessidade de um sujeito para o ato de pensar.

Ao fim do capítulo XVII, Descombes exporá a disputa que ocorreu entre Descartes e Hobbes acerca da materialidade ou imaterialidade desse sujeito que a ambos parece existir por força de necessidade. Esta última exposição pode fazer o leitor indagar a sua utilidade no corpo do texto desse capítulo específico, ou ainda, sua pertença ao grupo de argumentos que interessam à questão do sujeito. Não faz sentido se debruçar sobre uma sub-questão que pressupõe a resolução de uma questão maior que ainda não foi respondida. Diríamos que essa discussão sobre a questão da materialidade ou imaterialidade do sujeito se assemelha com as discussões escolásticas que punham em pauta a questão: “quantos anjos podem dançar sobre a cabeça de um alfinete ao mesmo tempo?” Desde que não possamos provar a existência de anjos, isso não nos interessa. Com isso não estou negando a importância da disputa entre Descartes e Hobbes em um tempo e lugar definidos, mas denunciando a referência indébita que dela faz Descombes.

Talvez o autor d’ O complemento do Sujeito não tenha ficado à vontade ao passar da análise da linguagem à abordagem da tradição filosófica da questão do sujeito. Pois as idas e vindas do autor ao seu ancoradouro da linguagem dificulta a compreensão do leitor, até mesmo de um leitor atento.

Contudo, o que um leitor atento não pôde deixar de perceber é que Descartes em suas Meditações metafísicas aponta para uma transparência da consciência a si mesma, de modo que posso duvidar de tudo, menos que “sou” quando penso. É possível levar a dúvida cartesiana mais longe e duvidar da minha própria consciência? Parece que pensadores como Marx, Nietzsche e Freud diriam que sim.

Por sua vez, mesmo que a consciência de si apareça deformada, falseada, ela ainda aparece para si mesma. Essa posição cartesiana é mantida mesmo que a consciência se engane a respeito dela mesma. É preciso deixar claro que existe uma diferença entre ter uma consciência falseada da própria consciência e ter uma consciência falseada de algum comportamento do agente. Digamos que alguém sonhe que está andando e se engane quanto a esse fato, isto é, julgue que realmente está andando. Esse engano específico não é ainda um engano da consciência em relação a ela mesma, mas ela se engana sobre um fato do mundo.

Para Descartes e seus herdeiros ortodoxos a consciência não se engana sobre ela mesma, na medida em que a consciência de andar, não é a consciência de um “agente da caminhada”, isto é, ela não é a consciência direta da ação de andar, mas uma experiência subjetiva. Quando existe uma reflexão sobre uma ação, isto é, quando um sujeito pensa sobre seu comportamento, então temos um sujeito de consciência. Descartes fez do sujeito da consciência o agente de pensamentos que serão, por sua vez, as causas desses movimentos.

Parece-nos que esse pequeno capítulo (XVIII) em que trata das filosofias da consciência tem o único objetivo de dizer: cartesianos ou não, os filósofos que se seguiram admitiram que “a consciência aparece para ela mesma”. Afirmação que por si só é problemática.

Aproveitando o ensejo do problema da “falsa consciência” V. Descombes rejeita a leitura que apresenta esse engano da consciência como “impressão de fazer algo quando não se faz”, pois, em primeiro lugar, o objeto de engano não deve ser o agente do comportamento, mas a própria consciência. Em segundo lugar, não faria sentido dizer que a consciência de andar não é dada ao sujeito como consciência de andar, pois ele não se perceberia andando, ele não teria a impressão de andar.

Tomando como exemplo os enganos de percepção relativos às coisas externas, o autor pretende ler essa “falsa consciência” de uma perspectiva diferente. Diz ele que a falsa consciência, por exemplo, uma consciência de estar vendo, se apresentaria sob a forma de se estar consciente de andar. Porém, isso continua difícil de aceitar.

Resta a Descombes voltar a seu ancoradouro da linguagem e operar uma crítica gramatical. Mas antes, por que não tentar encontrar respostas no interior da tradição filosófica mais uma vez. Esperamos ansiosamente por um posicionamento do autor.

Depois de exemplificar com uma parábola que a consciência de si não se trata de uma posição privilegiada do sujeito para com o conteúdo de suas intenções, portanto não sendo uma atividade refletida, chegamos a uma possível conclusão: “a consciência de si próprio a um agente é um conhecimento que ele tem de sua ação”. A partir de C. Taylor, podemos ver duas maneiras diferentes de conceber a filosofia da ação enquanto preocupada com a transparência da consciência para si mesma:

i. A consciência consiste na capacidade que alguém possui de determinar o que faz efetivamente.

ii. O sujeito não conhece sua ação, mas somente o seu desejo, sua experiência volitiva. (posicionamento cartesiano)

Wittgenstein, por outro lado, diz que a consciência transparente não é o ponto questionado. O que ele parece dizer é que partindo de uma verdade gramatical não há problemas em dizer que o sujeito das intenções sabe e pode declarar suas intenções, “embora isso não nos diga nada sobre o nosso espírito”.

Tendo em vista a dificuldade, não compreender os textos de V. Descombes presentes n’O complemento do Sujeito não é um fato extraordinário. A sua maneira de apresentar os problemas de filosofia em doses comprimidas causam freqüentes incompreensões. Por vezes não percebemos onde um argumento termina e outro começa. Além de nos parecer que alguns capítulos foram feitos de divisões de textos mais longos. Pois muitas vezes não conseguimos distinguir, no meio de tantos argumentos, o propósito do capítulo. É claro que é provável que o autor desse resumo crítico não seja o leitor ideal, nem o mais preparado dos leitores, mas a clareza que V. Descombes apresenta em sua discussão lógico-sintática se obscurece na tentativa de dialogar com a tradição filosófica. É, também, provável que essa dificuldade de compreensão resulte da dificuldade de sua empreitada.

A tentativa de mapear os argumentos filosóficos pelo menos nos ajuda a entender a novidade que foi a “descoberta” do sujeito. Ao ler alguns capítulos do livro já podemos perceber as diferenças da abordagem pré-moderna dessa idéia de sujeito que para nós já está tão arraigada na cultura, de modo que, teimamos em ver, muitas vezes, a mesma compreensão de sujeito na Antiguidade ou no Medievo. As diferenças entre as concepções pré-mordernas e a concepção moderna de sujeito saltam aos olhos. Sobretudo, saímos da leitura d’O complemento do Sujeito, como se aquilo que nos parece tão claro na experiência cotidiana: somos sujeitos, fosse, e talvez seja, um dos maiores problemas da filosofia.

E a despeito dos problemas de interpretação que em alguns momentos são possíveis na leitura de V. Descombes, ele parece ter realizado o propósito da filosofia, pois assim como Sócrates, o autor nos fez ver que aquilo que tomamos como certo e indubitável traz consigo uma gama de problemas que nos fazem entrar em perplexidade. Não devemos estranhar o desejo de matar o filósofo, pois é possível que esse desejo esteja justificado.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

IDEIAS CENTRAIS DO PRÓLOGO À GAIA CIÊNCIA

No prólogo à Gaia Ciência Nietzsche principalmente aborda a relação entre saúde e filosofia. Através de imagens discursivas como “a vitória sobre o inverno” (§ 1) ele fala biograficamente sobre a recuperação – ou apenas mais uma das recuperações – de sua saúde. O autor segue aprofundando a relação que uma filosofia pessoal tem com as próprias disposições corpóreas de um filósofo. Enquanto para alguns filosofar serve como um auxílio as suas deficiências, por outro lado, outros filosofam como conseqüência de sua “força e riqueza” (§2) (seria esse o caso de Nietzsche?)

A doença, a fraqueza do corpo não produz pensamentos diversos daqueles pensamentos refletidos em total equilíbrio e satisfação? Parece bastante sensato dizer sim. É assim que Nietzsche dirá que certos pensamentos sobre o além-mundo são inspirados pela doença e que “talvez os pensadores doentes predominem na história da filosofia” (§2). Deste modo, toda a tradição filosófica teria sido uma má-compreensão do corpo, talvez uma má leitura dos filósofos da sua própria compleição física e dos sintomas do corpo. Deveriam ter observado que tais pensamentos sobre o valor da existência, o além-mundo etc. eram apenas resultantes de se estar indisposto.

Por isso, Nietzsche diz que a questão do filosofar não é a “verdade”, mas a vida, a saúde, o poder, o futuro etc. Se me sinto doente e, portanto, mais cônscio de minha mortalidade, penso na eternidade, a anseio e desejo, não quero “a verdade”, mas sim, o meu consolo, meu apoio. Isso nos leva a pensar no esquecimento do corpo em detrimento do espiritual como coisa mais importante. E deve-se, assim, clarificar que não somos apenas “batráquios pensantes” (§ 3) e demonstrar a influência do corpo na filosofia, o qual não pode, de maneira nenhuma, ser separado da cabeça enquanto “sede” do pensamento.

Assim, uma nova postura se estabelece sobre a verdade, e tal postura só pode advir da experiência da doença e da fraqueza, pois dela “voltamos renascidos e de pele mudada”. “Já não cremos que a verdade continue verdade quando se lhe tira o véu”. (§4)