Renato dos Santos Barbosa
Introdução
Neste trabalho abordaremos os problemas
suscitados pelas afirmações de Halley S. Faust acerca do aprimoramento genético
para a moralidade. Em seu artigo intitulado “Should we select for genetic moral enhancement? A thought experiment
using the MoralKinder (MK+) haplotype”, H. S. Faust argumenta em favor da
obrigatoriedade do aprimoramento moral genético.
Antecipando um mundo em que a ciência se
tornou capaz de realizar aprimoramentos genéticos com maestria, inclusive aquele
para a moralidade, H. S. Faust supõe que tal procedimento não é apenas
permissível e desejável, mas obrigatório. Entretanto, essa afirmação é delicada
e polêmica, pois mobiliza uma variedade de assuntos que giram em torno do
aprimoramento genético.
Não nos deteremos nas questões relativas
à pessoalidade do embrião ou se é moralmente aceitável que embriões humanos
sejam usados e descartados em pesquisas genéticas, porém nos debruçaremos sobre
as possíveis consequências de um aprimoramento moral genético sobre a vida de
pessoas submetidas a essa modificação, suas implicações na sociedade e etc.
Utilizaremos o argumento de que a auto-compreensão
de ser modificado geneticamente poderia trazer problemas a empreitada dos que
defendem o aprimoramento genético e na esteira de Habermas apresentaremos
algumas críticas ao texto de Faust.
Defendemos que, embora não deva ser
proibido, o aprimoramento moral genético deve ser permitido, porém com algumas
ressalvas. A obrigatoriedade do aprimoramento é tão absurda quanto a sua
proibição. A despeito de o tema ter implicações políticas claras não nos
deteremos nesses pontos. O que nos move
aqui, depois de examinar as afirmações de Faust, são as questões: é prudente
selecionar geneticamente para a moralidade? Ou, podemos, efetivamente, levar a
cabo a intenção de aprimoramento ético universal por meios de intervenções
genéticas? Ou ainda, é desejável tal procedimento?
1.
A
auto-compreensão de ser modificado
sem consentimento
H. S. Faust afirma que a seleção
genética de embriões com o grupo de genes que favorece a moralidade (chamado
por ele de MK+) é desejável porque propicia um número maior de ações morais na
sociedade. Faust demonstra com um exemplo corriqueiro como o haplótipo MK+ funcionaria
no momento em que surgisse a necessidade de uma ação moral: Uma criança MK+ é
pressionada para roubar uma farmácia e supostamente decide não roubar 90% das
vezes em que essa ação lhe é proposta. Número impressionante que Faust se
apressa em explicar, dizendo que não se trata, no entanto, de uma determinação genética.
A criança MK+ continua livre para agir, inclusive, imoralmente. O grupo de
genes apenas predispõe seu detentor para a moralidade. “This is how haplotypes work. He will still have freedom
to choose his course of action” (FAUST, 2009, p. 400).
Entretanto, o que nos chama a atenção
são as possíveis justificativas da criança para a ação moral alegadas pelo
autor: simplesmente poderia dizer que não rouba porque é errado ou porque tem
medo da punição. Sentimos, nesse ponto, a ausência de outra justificativa da
criança: não roubo porque fui modificado antes de nascer. Parece que nosso
autor quer ignorar ou esconder a influência que o conhecimento de ser
modificado geneticamente tem sobre a vida do indivíduo modificado. Não devemos
nos preocupar tanto em saber como funciona o haplótipo da moralidade, porém,
devemos investigar as possíveis influências psicológicas da auto-compreensão de alguém como
modificado sem o seu consentimento.
As palavras de Habermas podem ser muito
esclarecedoras para o entendimento do assunto em questão:
Independentemente da extensão com
que uma programação genética realmente estabelece as qualidades, as disposições
e as capacidades da futura pessoa e determina seu comportamento, é o
conhecimento posterior que essa pessoa toma da situação que poderia intervir na
sua auto-relação com sua existência corporal e psíquica. (HABERMAS, 2004, p.74-75)
Não adianta tentar garantir o modo de
funcionamento dos grupos de genes MK+, pois o modo como as pessoas reagiriam ao
saber que são modificadas e que não participaram dessa decisão pode ser
inteiramente inesperado e o inverso do almejado pelos defensores do
aprimoramento moral genético. Consequências indesejáveis poderiam advir da
ideia de seres aprimorados geneticamente para a moralidade. Por exemplo, por
mais que os pais saibam como funciona o MK+ e suas características, o simples
fato de saber que seus filhos foram modificados geneticamente para a moralidade
pode gerar um certo descuido em relação a sua educação moral, fato que
invalidaria todo o processo de aprimoramento. Por outro lado, a falta de
consentimento dos filhos para o procedimento genético geraria uma relação
assimétrica, ou seja, não estaríamos nos relacionando com seres iguais a nós,
mas com pessoas que interviram diretamente, sem o nosso consentimento, na
história de nossa vida.
As intervenções eugênicas de
aperfeiçoamento prejudicam a liberdade ética na medida em que submetem a pessoa
em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são
irreversíveis, impedindo-a de se compreender livremente como o autor único de
sua própria vida. (HABERMAS, 2004, p.88)
A despeito desses problemas Faust
prossegue seu artigo afirmando que a pessoa MK+ tem uma percepção mais aguda de
uma dada circunstância e consegue fazer com mais clareza um julgamento moral,
podendo assim, agir de maneira correta no mais das vezes. “MK+ children have a higher acuity of appreciating
right from wrong, and a higher ability to act responsibly in any given set of
circumstances” (FAUST, 2009, p. 404). Porém, novamente o
autor esquece ou acoberta a influência do fator psicológico em uma dada ação. Talvez
o fato de se auto-compreender como um ser modificado geneticamente para a
moralidade causasse um desconforto que poderia atrapalhar seu julgamento moral
e consequentemente sua ação. Mais adiante o autor parece entrar em contradição
ao dizer que, do mesmo modo que um MK-, o MK+ também se arrepende de ter
cometido uma ação moral, sente ansiedade, medo etc. Se, de fato, o MK+ tivesse
mais perspicácia para julgar possibilidades de ação, ele jamais se arrependeria
de não ter cometido uma ação imoral. “The MK+ child might have regrets about not acting; she just is less
likely to turn those regrets into future wrong acts” (FAUST, 2009, 406). Ao
mesmo tempo em que o autor parece atribuir elementos cognitivos aos haplótipos
MK+, como uma melhor acuidade em relação a situações que necessitem de
julgamento moral, ele não faz valer essa ideia quando se trata de defender o
esforço e mérito da ação moral pela pessoa MK+, dizendo que este se arrepende
de ter cometido uma ação moral como se não percebesse o valor de sua ação.
Assim sendo, o haplótipo MK+ funciona como um impulso, um instinto para a
moralidade, sem poder algum para melhorar a nossa perspicácia para os cálculos
morais.
Isso traz à baila a questão da
interferência no livre-arbítrio.
2.
Interferência
no livre-arbítrio
Faust é claro ao dizer que o grupo de
genes MK+ não determina, mas apenas influencia a nossa ação, aumentando a
probabilidade de se cometer ações morais. Concordamos que talvez não haja
interferência do MK+ no livre-arbítrio, no entanto, tal influência pode
atrapalhar nossas ações morais e não levar a cabo as intenções de aprimoramento
moral. Nesse ponto o autor se vale novamente do argumento de que o MK+
proporcionaria uma melhor percepção, acuidade e etc., porém já vimos que essa
afirmação vai de encontro com o argumento que demonstra o mérito e esforço da
pessoa MK+. O esforço de Faust para salvaguardar a desejabilidade do
procedimento de aprimoramento moral genético reduz a quase nada a influência e
o valor positivo do MK+. Ele afirma que é apenas um impulso, uma predisposição
que sem a influência do meio e da educação não tem eficácia nenhuma.
O autor argumenta ainda que o
livre-arbítrio é um mistério e, tampouco sabemos como o MK+ influencia cada
etapa de uma ação (Cf. FAUST, 2009, p.405). Entretanto, podemos nos encher de
insegurança levando em consideração o mesmo argumento: se não sabemos como o
haplótipo da moralidade influencia nossa ação, então poderemos incorrer em
grave erro ao selecionar embriões MK+ em laboratório. Isso se agrava se
levarmos em consideração os fatores psicológicos envolvidos na questão como
mostramos mais acima.
Se pensarmos que esse processo de
aprimoramento moral tem uma natureza intervencionista, somos levados a crer que
não será eficaz se não for obrigatório para todos. Pois, se depender dos pais a
escolha ou não para o haplótipo MK+, nunca teremos uma sociedade totalmente
preparada para receber a moralidade. Por outro lado, submeter toda a humanidade
a um processo que pode ter severas consequências vai de encontro com o
princípio da beneficência procriativa, pois poderemos arruinar a possibilidade
de uma boa vida a toda uma geração vindoura. Ademais, a obrigatoriedade se
choca com a liberdade de auto-determinação dos filhos, assim como na liberdade
de escolha dos pais diante de uma proposta que não sabem ainda as
consequências. Talvez estejamos submetendo uma geração a um risco que não vale
a pena. E vale lembrar que na página 402 do artigo é dito: “nós queremos
melhorar o mundo [...] que geralmente significa trabalhar em direção [...] a
não interferência nos propósitos individuais” (FAUST, 2009). Parece-nos que não
levar em consideração os desejos e escolhas dos pais e os propósitos futuros
dos filhos são uma interferência nos propósitos individuais e isso indica um
retrocesso e uma piora do mundo.
3.
O
aprimoramento moral genético é desejável?
Segundo Faust, o aprimoramento moral
genético é recomendado e obrigatório, no entanto, devemos levar em consideração
que o fim a que esse processo almeja é o mesmo que o da nossa educação moral tradicional.
A pergunta é: porque submeter toda uma geração a riscos para atingir um fim que
nós temos conseguido realizar paulatinamente? Pois, o que sobrou ao MK+ depois
de resistir a todas as críticas respondidas por Faust? Apenas uma predisposição
cuja eficácia ainda depende da educação tradicional. Faust nem mesmo poderia
argumentar que a seleção para o MK+ é mais eficaz que o aprimoramento moral
tradicional, visto que em nenhum dos casos existe garantia de sucesso.
Não queremos proibir o aprimoramento
moral genético, mas apenas mostrar que os benefícios que ele pode trazer não
valem o risco de sua aplicação. Se, de fato, fosse encontrado um haplótipo da
moralidade, conviria que reformulássemos a nossa maneira de educar nossas
crianças e adolescentes. Não bastaria começar pela seleção genética, mas deveria
haver uma preparação de uma geração inteira. Precisaríamos de uma sociedade que
nela estivesse incutida princípios morais, normas e leis competentes para a
aplicação do aprimoramento moral genético, pois isso eliminaria muitas
consequências indesejáveis. No entanto, isso significa que precisaríamos já ser
morais para que o aprimoramento moral genético tivesse êxito e, assim, não
necessitaríamos mais deste. Não adianta esperarmos como que por uma dádiva
prometéica que nos torne morais.
Nós ainda, a despeito do tempo já
decorrido, não pudemos avaliar os resultados da educação moral tradicional,
visto que em muitos países, inclusive o nosso, existe um imenso déficit.
Sabemos que isso é um entrave para o aprimoramento moral genético, visto que
sem educação a engenharia genética de nada adiantaria. Assim, temos um imenso
trabalho a fazer e, certamente, ele não começa pela engenharia genética.
Portanto, à pergunta: o aprimoramento
moral genético é desejável? Respondemos que, embora ele compartilhe do mesmo
fim que nossa educação moral, seu procedimento é pouco viável e imprudente.
Examinamos o texto de H.S. Faust e
apresentamos críticas que nos parecem plausíveis ao seu artigo. Em alguns
momentos notamos um otimismo exagerado do autor em relação ao tema do
aprimoramento moral genético. Destacamos que Faust ignora intencionalmente o
problema da auto-compreensão de ser modificado, assim como apontamos a
contradição do autor em relação a uma possível maior percepção de um conjunto
de circunstâncias da pessoa MK+. Concordamos em parte com Faust a respeito do
livre-arbítrio, pois também não consideramos que o MK+ determine as pessoas a
certas ações. Porém, se não sabemos como funciona o livre-arbítrio também não
podemos estar seguros do tipo de influência dos genes da moralidade. O que de
mais importante fica nessa questão do livre-arbítrio é que o poder dos genes
diminui drasticamente quando confrontado com o argumento de que estes
cerceariam a nossa liberdade de ação. Isso põe em dúvida o valor positivo dos
MK+ frente às suas consequências. Por conseguinte, concluímos com a negação da
desejabilidade do aprimoramento moral genético e, por isso, a discussão em
torno da permissibilidade, proibição ou obrigatoriedade não vem ao caso, visto
que, embora concordemos que seja permitido, não concordamos que a seleção
genética para a moralidade seja desejável.
Portanto, afirmamos não ser prudente,
desejável nem viável o aprimoramento moral através da engenharia genética.
FAUST, H. S. Should
we select for genetic moral enhancement? A thought experiment using the
MoralKinder (MK+) haplotype. Published online:
Springer, 9 January 2009
HABERMAS,
J. O futuro da natureza humana. Trad.
Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.