quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A moral como antinatureza


Uma moral se caracteriza como antinatural quando seus preceitos se voltam contra os instintos da vida. O cristianismo é o maior exemplo de uma moral antinatural. E isso se deve ao fato da moral cristã declarar guerra contra os instintos e paixões de maneira a querer extirpá-los, e, se possível, também os veículos pelos quais é possível lhes dar vazão (cf. Nietzsche, 2008, p.33). Deste modo essa moral se posiciona contra a vida, privilegiando uma vida e um mundo fantasioso que estranhamente se tornou o mundo verdadeiro.
A radicalidade dessa moral que quer “arrancar o mal pela raiz” só evidencia uma verdade que quer se manter escondida: aqueles que se posicionaram hostilmente contra as paixões e que anunciaram em praça pública sua ojeriza a toda sensualidade são os mais degenerados (cf. Nietzsche, 2008, p.34). Pois estes não suportam conviver com seus “diabos”, os querem longe de si. São decadentes, naturezas enfermas que não são nem libertinos nem ascetas. Pois se fossem ascetas não teriam necessidade de lutar contra os instintos, já os teriam vencido. Seu desejo de denunciar os “pecados” se configura apenas como um auto-covencimento para reforçar sua vontade hesitante.
A castração dos instintos que surge como preceito no Sermão da montanha: “arranca-o de ti” (Nietzsche, 2008, p.33), demonstra toda a estranheza à vida evidenciada na moral cristã. Esta obriga Nietzsche a elogiar a moral precedente. N’O problema de Sócrates o filósofo alemão chama os judeus de dialéticos (Nietzsche, 2008, p.20), provavelmente pela natureza enganadora de um dos patriarcas do povo judeu: Jacó. Não obstante, comparado a moral cristã, o judaísmo merece ser elogiado. Pois o Deus dos Judeus é Senhor da guerra, não um pai amoroso; viviam sob a ideia de que deveriam ser cabeça e não cauda, enquanto o cristianismo prega o deixar-se humilhar; é uma moral viril que fez um deus a sua imagem, um deus que legitimou sua vontade e disse não a submissão e a resignação que são sabidamente características cristãs. Mas a diferença que deve ser marcada aqui ainda não foi dita: O aleijo, a castração, as anomalias físicas, não eram de modo algum motivadas como no sermão da montanha. Pelo contrário, tudo que mostrava fraqueza era mau, digno de vergonha. O medievo Abelardo quando foi emasculado se entristeceu profundamente ao lembrar-se da distância dos cultos e cerimônias religiosas que eram impostas aos judeus deformados e de toda a ignomínia a que eram submetidos. Essa oposição mostra o quanto de negação à vida há na moral cristã.
Ademais, a erradicação dos desejos e impulsos que visam a uma paz de espírito anula o movimento, a diferença, a multiplicidade, enfim, anula a vida. Os instintos não devem ser erradicados, devem ser espiritualizados. Por exemplo: a sensualidade espiritualizada é o amor (Nietzsche, 2008, p.34). E deste modo, os instintos enquanto parte da vida são afirmados. A vida é afirmada. Se pensarmos na inimizade segundo a moral cristã, veremos somente como um mau a ser arrancado, porém devemos ter em mente que a inimizade em forma de oposição é uma maneira de dinamizar a vida, de dar movimento, de permanecer existindo. Se, então, negarmos a inimizade como um instinto de vida, negaremos a vida em detrimento de uma paz de espírito. E esta talvez seja apenas um mal-entendido, pois tomaram como espiritual algo inteiramente animal como, por exemplo, uma “digestão bem sucedida”. Talvez a “paz de espírito” não seja mais que isso.
A moral cristã se revoltou contra a vida. O mundo (kósmos) já não é visto como uma ordem, mas como sinônimo de impureza e pecado. A vida foi condenada. E o absurdo disso é que a vida foi condenada por um vivente. Como, pois, um vivente pode ser imparcial o bastante para emitir um juízo sobre a vida? Como esse juiz conheceria todas as diferentes maneiras de viver para poder atribuir valor a vida? É um “problema inacessível”. Mas a moral cristã inverteu os valores: o que é fraco ela chamou de forte e o que é forte fraco. “Ela diz: pereça!” (Nietzsche, 2008, p.37) Ela diz: viver é há muito tempo estar enfermo (Nietzsche, 2008, p.17), tal como disse Sócrates, o qual é encarado por Nietzsche como cristão, mesmo tendo vivido antes de cristo. Essa moral quer identidade e não multiplicidade, quer eternidade e não devir, quer estaticidade e não movimento, quer a morte e não a vida, quer o nada. E o seu desejo de identidade se manifesta sempre que um padre ou pastor quer que todos sejam iguais, iguais a ele, iguais entre si. A imagem do rebanho representa perfeitamente o aspecto da identidade no cristianismo. Moral de rebanho.
Uma moral natural é caracterizada pela dominação de um instinto da vida. Afirma a vida. E tudo aquilo que vai de encontro à vida e a seus instintos é rejeitado. Os preceitos morais se baseiam na vida, nesta, na única que possuímos. Não quer identidade, quer diferença, quer oposição, multiplicidade, movimento, devir... A antinatural diz: pereça!

REFERÊNCIAS
Nietzsche, Friedrich. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O pàr hemàs adespotós na physiología de Epicuro

A natureza na filosofia de Epicuro tem três modos de ocorrência, a saber: coisas que acontecem por necessidade, por acaso e por nós. O que me chama a atenção é o terceiro modo de ocorrência da phýsis, pois observo que este não é normalmente considerado entre as realizações da natureza. Epicuro afirma, de modo intrigante, que a phýsis se realiza também através de um modo de ocorrência, que é de tal modo novo na physiología, que não tem um nome que remeta a outros pensadores e filosofias assim como týche e anánke, e por isso, o filósofo do jardim se utiliza da seguinte expressão: pàr hemàs adespotós (o que é por nós é sem mestre). Esse modo de realização da natureza é aquele que acontece através da livre ação do homem.

Se considerarmos as implicações desta idéia, veremos que, por exemplo, não podemos nos tomar por separados da natureza, interferindo de fora, mas que todas as nossas ações livres que pensávamos nos afastar dela, são apenas uma das maneiras que a phýsis se realiza. Ademais tudo que ocorre só ocorre por necessidade, por acaso e por nós, ou seja, tudo que acontece realiza a phýsis.

Essa ideia nos parece estranha porque sempre pensamos a natureza como algo a ser estudado, modificado ou destruído pelo homem. A natureza nunca foi tão vista e pensada como objeto quanto nos tempos atuais. E a maneira como se investiga a natureza, baseada na lei da causalidade e indução, nos faz pensar nela como uma grande cadeia de eventos necessários, mas o que Epicuro quer chamar a atenção é que ela tem um modo de ocorrência especial, que vai além da necessidade e do acaso, que depende de nós. Nós não realizamos a physis apenas quando desempenhamos as nossas funções bioquímicas, mas também quando cometemos atos de liberdade. A liberdade é um fenômeno físico.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Le justice dans epicurisme


Il affirmait encore que la «justice n'existe pas en soi. Elle n'existe que dans les contrats mutuels, et s'établit partout où il y a engagement réciproque de ne point léser et de ne point être lésé.» Point de société, point de droit: «À l'égard des êtres qui ne peuvent faire de contrats, il n'y a rien de juste ni d'injuste. De même pour les peuples qui n'ont pas pu ou n'ont pas voulu faire de contrats.» Il disait encore que «s'il pouvait y avoir des contrats entre nous et les animaux, il serait beau que la justice s'étendît jusque-là». La justice est donc fondée par la convention et la convention a pour objet l'utilité réciproque. Nous retrouverons plus tard ces principes dans l'histoire de la politique moderne. Hobbes en construira le système de la manière la plus savante et la plus conséquente.

PAUL JANET, Histoire de la science politique dans ses rapports avec la science morale, Paris, Félix Alcan, 1887.

Tradução :

A justiça no epicurismo

Ele (Epicuro) afirma ainda que a “justiça não existe em si mesma. Ela só existe nos contratos mútuos, e se estabelece por toda parte onde há compromissos recíprocos de não lesar e não ser lesado”. Item da sociedade, questão do direito: “No que diz respeito aos seres que não podem fazer contratos, não há nada de justo nem de injusto”. “Do mesmo modo para as pessoas que não tem podido ou não tem querido fazer contratos.” Ele dirá ainda que “poderia haver contratos entre nós e os animais, seria belo que a justiça se estendesse até lá”. A justiça é, pois, fundada pela convenção e a convenção tem por objeto a utilidade recíproca. Nós reencontraremos mais tarde esses princípios na história da política moderna. Hobbes construirá o sistema de maneira mais douta e mais conseqüente.

domingo, 18 de julho de 2010

Sentenças Vaticanas


Apenas três textos completos do filósofo Epicuro de Samos (341- 270 a.C) chegaram até nós, a saber, a carta endereçada a Heródoto, que juntamente com a carta a Pítocles buscam resumir o conteúdo relacionado ao saber sobre a physis, e a carta a Meneceu que veicula o saber ético. Esses textos estão incluídos na obra de Diógenes Laércio intitulada "Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres", obra que contém dez livros e que teve o último reservado para o filósofo de Samos. Nesse livro encontramos o testamento de Epicuro, vários comentários e escólios feitos por Diógenes Laércio, que talvez tenha sido um epicurista, e também um fragmento de uma carta endereçada a um amigo e discípulo chamado Idomeneu. A obra termina, então, com uma série de máximas de Epicuro que contam o número de quarenta.

Por muito tempo esses eram os únicos textos de Epicuro, porém, em 1888 foram encontrados no Códice Vaticano grego oitenta e uma sentenças que chamamos, por isso, de Sentenças Vaticanas. Algumas dessas sentenças já se encontravam inseridas nas máximas que foram veiculadas por Diógenes Laércio, porém muitas eram inéditas.

Eis algumas dessas Sentenças Vaticanas de Epicuro:

23 Toute amitié est par elle-même désirable ; pourtant elle a eu son commencement de l’utilité.

Tradução:

Toda amizade é por ela mesma desejável; no entanto ela tem seu início na utilidade.

28 Il ne fault approuver ni qui est trop prompt à l’amitié, ni qui est trop lent : car il faut être prêt même à s’exposer hardiment au danger, en faveur de l’amitié.

Tradução:

Não se deve aprovar nem quem é muito rápido para a amizade nem quem é muito lento: porque se deve estar pronto mesmo para se expor audaciosamente ao perigo, em favor da amizade.

34 Nous ne recevons pas autant d’aide, de la part des amis, de l’aide qui nous vient d’eux, que de la confiance au sujet de cette aide.

Tradução:

Nós não recebemos tanta ajuda, da parte dos amigos, da ajuda que nos vem deles, que da confiança no sujeito dessa ajuda.

39 N’est ami ni celui qui cherche toujour l’utile, ni celui qui jamais ne le joint à l’amitié : car le premier, avec le bienfait, fait trafic de ce qui se donne en échange, l’autre coupe le bon espoir pour l’avenir.

Tradução:

Não é amigo nem aquele que busca sempre o útil, nem aquele que jamais não o ligou (o útil) à amizade: pois o primeiro, com o benefício, faz tráfico do que se dá em troca, o outro retira as boas esperanças para o futuro.

43 Aimer l’argent en enfreignant la justice est impie, sans l’enfreindre est laid: car il est malséant d’épargner sordidement, même en respectant la justice.

Tradução:

Amar o dinheiro infringindo a justiça é ímpio, sem a infringir é feio: porque é impróprio economizar sordidamente, mesmo respeitando a justiça.

45 Ce ne sont pas des fanfarons, ni des artistes du verbe, ni des gens qui font étalage de la culture (paideia) jugée enviable par la foule, que forme l’étude de la nature, mais des hommes fiers et indépendants, et s’enorgueillissant de leurs biens propes, non de ceux qui viennent des circonstances.

Tradução:

Não são os fanfarrões, nem os artistas do verbo, nem as pessoas que fazem exposição da cultura, julgados invejáveis pela multidão, que formam o estudo da natureza, mas de homens orgulhosos e independentes, e que se orgulham de seus bens próprios, não os que vêm das circunstâncias.

52 L’amitié mène as ronde autour du monde habité, comme un héraut nous appelant tous à nous réveiller pour nous estimer bienheureux.

Tradução:

A amizade ronda em torno do mundo habitado, como um arauto chamando à todos nós a despertar para nos considerar bem-aventurados.

67 Une vie libre ne peut pas acquérir de grandes richesses, parce que la chose n’est pas facile sans sa faire le serviteur des assemblées populaires ou des monarques, mais elle possède tout dans une abondance incessante ; et s’il lui arrive de disposer de grandes richesses, facilement aussi elle les distribue, en vue de la bienveillance du voisin.

Tradução:

Uma vida livre não pode adquirir grandes riquezas, porque não é fácil faze-lo sem se tornar (fazer) servo das assembléias populares ou dos monarcas, mas ela (a vida livre) possui tudo em uma abundância incessante; e se chega a ter grandes riquezas, facilmente também às distribui, em vista da benevolência do vizinho.

78 L’homme bien né s’adonne surtout à la sagesse et à l’amitié : desquelles l’une est un bien mortele, l’autre un bien immortel.

Tradução:

O homem bem nascido se devota, sobretudo, à sabedoria e a amizade: dos quais, um é um bem mortal, o outro um bem imortal.

Obs: As Sentenças Vaticanas aqui postas foram retiradas da obra de M. Conche: Epicure: lettres et maximes. Paris: éd. De Megare,1977.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Trabalho: O acaso na Física de Aristóteles


INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende esclarecer a compreensão aristotélica de týche e de autómatov, os quais podem ser traduzidos respectivamente por acaso e espontâneo como o faz Lucas Angione, mas também, e prefiro deste modo, por fortuna e acaso. Trata-se da questão do acaso como foi abordada por Aristóteles no livro II da Física. Pisando nos passos do Filósofo, almeja-se repassar os objetivos estabelecidos por ele, visando assim, esclarecer pontos obscuros do texto. Após expor a doutrina das causas, Aristóteles dedica três capítulos ao estudo do acaso, a saber, os capítulos 4, 5 e 6 que examinaremos aqui.


O acaso na Física de Aristóteles

- Objetivos

Aparentemente a explicação de Aristóteles a respeito das quatro causas não dava conta de algo que é observável no cotidiano dos homens: fatos que dizemos acontecer por acaso, tanto na natureza como em nossas vidas. Por isso ele estabelece no capítulo 4 (195b 31) três questionamentos que irão nos guiar na busca pela compreensão do acaso:

a) De que modo se encontram nas quatro causas a fortuna (týche) e o acaso (autómaton)?

b) A fortuna e o acaso são idênticos ou não?

c) O que são a fortuna e o acaso?

Porém antes de examinarmos essas questões devemos acompanhar Aristóteles na investigação a respeito do que pensavam os homens a respeito da fortuna e do acaso.

Opinião de alguns homens

O filósofo percebe que as opiniões acerca do acaso são confusas, uns afirmam a sua existência enquanto outros a negam. As divergências são fruto da dificuldade da investigação em questão. Muitos se apóiam sobre o pensamento dos antigos sábios e dizem:

  • Nada vem a ser a partir do acaso
  • Há uma causa determinada para tudo aquilo que dizemos vir a ser por fortuna ou acaso.
  • Nenhum dos antigos sábios julgou haver algo por acaso.

Aristóteles é movido pelo espanto (thaumastón) (196a 11) gerado pelo descaso dos pré-socráticos no que diz respeito ao assunto, pois, uma vez que muitos afirmam que coisas acontecem cotidianamente por acaso, eles deveriam ter se posicionado sobre a existência ou não desses fatos. Outros se utilizaram dele, mas não o teorizaram, tal como Empédocles (196a 22).

Ainda há aqueles que negam o acaso na natureza, mas consideram que a geração dos céus e dos mundos foi um acontecimento fortuito. Porém Aristóteles os critica argumentando que nada se vê acontecendo casualmente nos céus, mas no mundo sublunar, de fato, vemos coisas acontecendo a partir do acaso.

Enfim, há outros, como Aristóteles, para os quais o acaso é uma causa (196b 5).

Feita a revisão do que alguns pensam sobre o tema, começaremos a tentar responder junto com Aristóteles as questões postas por ele.

O que são a fortuna e o acaso?[1]

Aristóteles afirma que existem (I) coisas que acontecem sempre, (II) coisas que acontecem na maioria das vezes e (III) coisas que acontecem excepcionalmente. Aquilo que acontece a partir do acaso e da fortuna é algo que acontece apenas excepcionalmente. (196b 10-13)

Entretanto, o que ocorre apenas excepcionalmente também acontece em meio das coisas que são em vista de algo e, portanto, podemos afirmar que o que acontece a partir do acaso surge na ordem das coisas que têm causa final. Mas o que o diferencia terminantemente das coisas que acontecem necessariamente é que o acaso é acidental: “As coisas que vêm a ser segundo acidente (symbebekós) dizemos que elas são a partir do acaso” (196b 23).

Mas o que Aristóteles quer dizer com acidente? O acidente é, em oposição à essência, qualquer atributo que sua alteração não implica a alteração do ser. E isso pode ser aplicado às causas. Pois a casa tem por causa essencial a arte de se edificar casas e, por outro lado, tem por causas acidentais a sua cor branca ou músico que mora nela, ou seja, a casa não veio a ser porque é branca ou porque um músico mora nela, mas por causa da arte de se edificar casas. (196b 26)

Entretanto, quando algo acontece por acaso é o mesmo que dizer que acontece por acidente. Digamos que eu tenha me perdido em uma ilha e estou com sede, com fome e sem moradia, assim, subo em um coqueiro visando obter a água do coco que saciaria a minha sede, porém as palhas do coqueiro se quebram formando um teto sobre grandes pedras abaixo de mim, de modo que percebo que a minha intenção de beber água resultou na construção de minha moradia em que passarei a noite. Por conseguinte, a causa da existência de minha moradia não foi a arte de edificar casas, mas a minha sede. Portanto, podemos afirmar que casos semelhantes a esse são a partir do acaso, pois são acidentais. Evidentemente que essa ilustração é um tanto exagerada, mas serve de ensejo para citar uma passagem da Física que diz: “Entre as causas por acidente, há umas que são mais próximas que outras” (197a 21). Assim, a sede como causa acidental para a construção de um abrigo está mais distante que, por exemplo, um filósofo ser causa acidental da construção de uma casa.

De que modo se encontram nas causas a fortuna e o acaso?

Já sabemos que a fortuna e o acaso se referem ao que é excepcional e que são causas acidentais. Mas qual a relação dessas causas acidentais com as quatro causas estabelecidas por Aristóteles? As causas acidentais ocorrem no domínio do que acontece em vista de algo (196b), mas elas mesmas não são em vista de algo (não tem causa final).

O excepcional surge entre o que se dá necessariamente e altera sua finalidade, então, manifesta-se o acaso como causa acidental, pois a causa motriz que normalmente resultava em determinado fim resulta em outro. E os acidentes que podem ocorrer são ilimitados, de modo que a sede, no exemplo acima, foi causa da construção do meu abrigo. O acaso se dá, portanto, na interposição da causa acidental entre a causa motriz e a causa final. Pois a fortuna e o acaso “estão no de onde o começo do movimento” (198a 1). Cabe dizer que “o acaso é algo a parte da explicação” (197a 18) porque deriva dos acidentes ilimitados, ou seja, não se pode fazer ciência das coisas que se dão por acaso.

Pode-se observar que na maioria das vezes que citamos o acaso também citamos a fortuna e essa relação de semelhança gera uma dúvida que Aristóteles procura dirimir: existe diferença entre eles?

A fortuna e o acaso são idênticos?

Aristóteles afirma: “O acaso (autómaton) é mais amplo que a fortuna (týche).” E ainda: “Tudo que é a partir da fortuna é a partir do acaso, mas nem todo acaso é a partir da fortuna” (197a 36).

Torna-se óbvio que tudo o que é fortuna (týche) é acaso (autómaton), mas nem tudo o que é acaso é fortuna, pois o acaso é mais amplo. E como afirma Mansion: “A fortuna (týche) em sentido estrito não é mais que uma espécie do acaso” (MANSION, p. 292)

A grande diferença entre o que acontece a partir da fortuna e a partir do acaso está no campo de atuação de cada um, pois a fortuna é da ordem das ações dos seres animados que possuem a capacidade de escolher, enquanto que o acaso se dá entre os animais que não escolhem e entre os seres inanimados.

Assim, o týche é o autómaton ocorrendo internamente naquilo que depende da escolha, por exemplo, quando alguém vai à praça[2], tendo em vista espairecer, mas chegando lá encontra um devedor e cobra a sua dívida. Qual será o resultado dessa ação? Sabemos que a causa final que era espairecer foi alterada pela finalidade de cobrar devido à casualidade do seu devedor aparecer na praça. Entretanto, o ato de cobrar em vista de receber o dinheiro depende da escolha do devedor de pagar e da escolha do cobrador em cobrar. Digamos que a dívida foi paga e façamos a retrospectiva da ação:

A – Saiu de casa para espairecer. A’ – Saiu de casa, não para espairecer, mas para cobrar.

B – O homem cobra o devedor e este decide lhe pagar.

Dá-se o týche, pois a ação de espairecer resulta no recebimento de uma dívida. Esse fato se caracteriza como týche por ser a partir do autômaton no âmbito dos escolhíveis.

Por sua vez o autômaton ou acaso é algo “cuja causa é externa e vem a ser não em vista daquilo que resulta” (197b 13). Ou simplesmente algo que não realiza sua causa final pela interposição de uma causa acidental. Para Aristóteles, que supunha uma geração espontânea na natureza, dizia que esta era fruto do autômaton, pois era um fato excepcional que não dependia de escolha, mas que ocorria na phýsis para além da necessidade. Outro exemplo são as crianças que nasciam com anomalias, pois a única resposta para esse fato que Aristóteles poderia dar é que são fatos excepcionais e, portanto, casuais.

CONCLUSÃO

Podemos definir o acaso, pelo que vimos, como “uma causa por acidente, cujos efeitos são os fatos excepcionais, pertencem a ordem daqueles que se produzem em vista de um fim, mas que eles mesmos não são produzidos em vista de um fim realizado” (MANSION, p. 305) Essa definição serve para o acaso e para a fortuna exceto pela diferença de atuação, visto que a fortuna “é limitada ao domínio da atividade prática do homem” (MANSION, p. 293) e o acaso pode agir em toda phýsis. Aristóteles encontra lugar para o acaso na sua teoria, mas nega que possa haver uma ciência de fatos acidentais e, portanto, a partir do acaso (197a 18).

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Física I-II, trad. de Lucas Angioni. Campinas: IFCH, 2002.

Lucas ANGIONI. Física (livros I-II), Textos Didáticos nº. 34, Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas, Unicamp, 1999.

MANSION, Augustin. Introduction a la Physique Aristotélicienne. Éditions de l’institut supérieur de philosophie de l’université de Louvain. P

[1] Como se vê, preferi traduzir týche por fortuna e autômaton por acaso, pois acredito que traduzir por acaso e espontâneo pode causar confusão em alguns momentos.

[2] Utilizo aqui um exemplo de Aristóteles (196b), mas incluo alguns elementos.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O acaso na física de Aristóteles


Este pequeno texto é uma prévia do trabalho que farei, provavelmente este final de semana, a respeito do acaso na Física aristotélica.

Aristóteles dedica os capítulos de 4 à 6 da Física ao tema do acaso e visa responder às questões?

a) O que é o acaso e o espontâneo?

b) Como o acaso e o espontâneo interagem com as quatro causas?

c) Qual a diferença entre acaso e espontâneo?

O acaso e o espontâneo são para Aristóteles causas que se interpõem entre a causa eficiente e a causa final que se esperava obter anteriormente, ou seja, quando agimos, por exemplo, de modo a esperar dado resultado e este não ocorre. O acaso é uma causa, mas indeterminada até que aconteça, pois é acidental. São fatos que não ocorrem sempre, nem no mais das vezes, mas excepcionalmente.

A diferença entre o acaso (týche) e o espontâneo (autômaton) se manifesta no seu campo de atuação e na amplitude desta. O espontâneo é mais amplo e abarca tudo o que acontece por acaso. O acaso se dá nas ações dos seres animados e o espontâneo acontece no âmbito dos seres inanimados.

Nos capítulos já citados Aristóteles critica os pré-socráticos por não terem incluídos em suas teorias a ação do acaso, quando muito, especularam que o espontâneo ocorre na gênese do mundo, mas não nas ocorrências da phýsis que vemos diariamente. Tamanho absurdo espantará Aristóteles.

Enfim, só estou esquentando a pena para o trabalho do final de semana.



domingo, 13 de junho de 2010

Resumo do capítulo 15 do livro "Os problemas da filosofia" de Bertrand Russell


Russell conclui o livro “Os problemas da Filosofia” com um capítulo que se ocupa de refletir sobre o valor da filosofia e por que ela deve ser estudada. Isso se faz necessário visto que muitos consideram a filosofia inútil se comparada com as ciências que influem diretamente na vida de todos os homens através de novas tecnologias e etc.

Esta visão é resultado de uma ignorância da parte destes homens acerca dos fins e dos bens que a filosofia almeja. Os que comungam da opinião acima são os homens ditos práticos, os quais reconhecem apenas necessidades materiais e negligenciam as espirituais. Porém, Russell afirma que se todas as mazelas da sociedade fossem erradicadas e todas as necessidades materiais supridas “haveria ainda muito a fazer para produzir uma sociedade verdadeiramente válida”. Por isso a filosofia tem seu valor.

O valor da filosofia deve ser buscado entre os bens do espírito, pois ela visa o conhecimento. Um conhecimento que organize sistematicamente o saber científico e examine criticamente as nossas crenças fundamentais.

Entretanto a filosofia não alcançou os resultados positivos que vemos que foram alcançados pelas outras ciências. Mas isso não significa que a filosofia é um saber inútil, pois, o que de fato acontece, é que assim que a filosofia torna possível um saber específico ele deixa de ser filosofia e passa a ser, por exemplo, física, psicologia, lingüística etc.

Embora as questões investigadas pela filosofia sejam aparentemente insolúveis, esse exercício faz com que se perdure o interesse especulativo em torno do universo. A filosofia diminui o nosso sentimento de certeza sobre as coisas, mas aumenta nosso conhecimento do que elas poderiam ser, libertando-nos da obviedade do senso comum.

Aquele que se debruça sobre a filosofia tem seu mundo privado alargado, pois o Todo passa a ser visto com imparcialidade, nossos problemas se apresentam como uma parcela ínfima do Todo infinito.

Por fim, a filosofia deve ser estudada porque amplia as nossas concepções acerca do possível, enriquece a nossa imaginação intelectual e diminui a arrogância dogmática que impede a especulação mental.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Liberdade


Advertência: antes que alguém leia este texto, quero pedir ao leitor que não o leve muito a sério. São apenas divagações dianoiafágicas de um aluno de graduação em filosofia.


O tema da liberdade se encontra na contemporaneidade em meio às discussões dos libertaristas, deterministas e compatibilistas. As definições de liberdade dependem inteiramente de nossa noção de causalidade (pelo menos em relação aos libertaristas e deterministas), uma vez que ser livre é não ser causado. No que tange aos compatibilistas, acredito que eles mudam o foco da questão, não falando mais em uma liberdade metafísica, mas voltando ao senso comum de liberdade: ser livre é não ser coagido. De modo que acredito que a questão pode ser resolvida sem que seus termos sejam mudados.
Como a compreensão da liberdade depende de nossa noção de causalidade, se alguém enfraquecesse essa noção, colocando-a em dúvida, a compreensão libertarista estaria em vantagem. E Hume fez isso na modernidade, pois discorrendo a respeito das questões de fato, observou que entre os eventos que normalmente se seguem só o hábito da experiência poderia nos dar um pouco de segurança quanto a sua repetição, mas que nada há no evento A nem no evento B que segue do primeiro, algo que imprima em nós a noção de causalidade. Nem ela é a priori, visto que se imaginarmos um Adão bíblico totalmente inexperiente, este não saberia as propriedades da água, nem que ela o molharia se ele entrasse em um rio, mas só depois da experiência, através do hábito, ele notaria essa conjunção de fatos.
Por conseguinte, se não sabemos se realmente há causalidade na natureza, se não a posso sentir, então ela cai em descrédito no que toca a questão da liberdade, principalmente se nos direcionarmos para uma filosofia que coloca na sensação o seu critério de verdade, assim como é a filosofia Epicurista, que irá reverberar durante a modernidade e influenciará o pensamento do próprio Hume. A ciência toda se baseia na causalidade, na indução etc. Mas não sabemos, de fato, se tais crenças estão concordes com a natureza, não sabemos da existência real das coisas, porém de uma coisa sabemos: estamos seguros de nossas sensações quando sentimos. Por isso diante dos céticos e até mesmo diante de um ceticismo de Demócrito quanto às sensações, Epicuro coloca a evidência sensível como critério de verdade.
Assim, se eu sinto a liberdade quando escolho, e penso que poderia ter escolhido de modo diferente se assim quisesse, eu sou livre. Lucrécio e Diógenes d’Oinoanda, discípulos de Epicuro falam em desvios atômicos aleatórios que faziam que os átomos se chocassem, pelos quais se tornou possível a existência dos corpos agregados de toda a phýsis. Sem tais desvios a natureza não existiria, de modo que a realidade está fundada sobre o acaso.
Porém o acaso não nos torna livres. Como poderíamos ser livres quando tomamos decisões aleatórias? Obviamente o acaso não nos dá liberdade alguma, porém nos dá condição para sermos livres. Pois ele quebra uma cadeia causal estabelecida no pensamento de Demócrito, abrindo a possibilidade para afirmarmos a nossa liberdade.
Para o exercício da liberdade basta que se aja com cálculo, raciocinando de maneira a que tudo convirja para nosso bem. Porém como uma filosofia que tem como critério de verdade a sensação pode nos falar de desvios atômicos? Essa é uma questão inevitável e foi fonte de críticas ao Epicurismo, mas que, embora pareça, não é uma contradição. Pois na canônica epicúrea uma teoria sobre aquilo que não cai no âmbito dos sentidos, para que seja válida, não pode contradizer nossas sensações. Se, de fato, sentimos liberdade e ela não pode ser experimentada em uma realidade fechada em uma cadeia causal então essa realidade tem que ter um componente de aleatoriedade e de acaso, e no epicurismo esse componente é o desvio atômico. Portanto o desvio atômico pode ser conhecido indiretamente e não contradiz as sensações.
Enfim, a liberdade é o fundamento e a justificativa para a autarkéia, para as nossas ações responsáveis. Se não fossemos livres, onde estaria o lugar para a culpa, a responsabilidade e para o elogio?

sábado, 13 de março de 2010

Resumo do capítulo 01 do livro "Os problemas da filosofia"


“APARÊNCIA E REALIDADE”

A obra “Os problemas da filosofia” do filósofo britânico Bertrand Russell foi produzida com o intuito de popularizar a filosofia, e, com tal propósito, Russell inicia o livro com um capítulo que investiga a distinção entre aparência e realidade. Mostra que até mesmo as coisas mais simples do cotidiano podem vir a se tornar matéria para inquirições filosóficas, transformando o nosso modo de ver o mundo e trazendo de volta nosso interesse acerca dele.
Deste modo o papel da filosofia é evidenciado logo no início do capítulo: reavaliar tudo o que conhecemos, pois por vezes, o que nos parece óbvio, posteriormente se mostra contraditório. Assim se justifica a questão: Existe algum conhecimento tão certo do qual não possamos duvidar? E a resposta a essa questão será negativa se tivermos em vista os argumentos apresentados por Russell no decorrer do capítulo.
De fato o conhecimento nos advém de nossas experiências presentes, daquilo que atinge os nossos sentidos, ou seja, os dados sensíveis. Porém Russell evidencia que no momento em que nos debruçamos sobre o que pensamos conhecer e o analisamos, surgem dúvidas sobre a realidade daquilo que percebemos ou, de outro modo, duvidamos a respeito da natureza daquilo que atinge a nossa sensibilidade.
Pois, uma vez que cor, textura, e forma estão sujeitos a diferentes modos de serem percebidos, dependendo da perspectiva adotada pelo observador no caso da forma, da incidência de luz sobre o objeto no caso da cor e também no que se refere a instrumentos que potencializem os nossos sentidos, como o microscópio no caso da textura, não há como, pensando nas diversas formas de percepção que existem sobre um mesmo objeto, depositarmos a mesma confiança nos sentidos que tínhamos antes de começarmos a investigação.
Então é que surge, inelutavelmente, a distinção entre aquilo que chega a nossos sentidos e o ser da coisa mesma, a distinção entre aparência e realidade. E se deixando levar pela dúvida, cogitamos, até mesmo, tal qual Berkeley, a inexistência deste mundo de matéria e aparência, tendo em vista que só o que temos certeza nesse mundo é que há pensamentos, mentes e sentimentos.
A maioria dos pensadores está de acordo quanto à existência e independência das coisas em relação a nós, mas não quanto a sua natureza. Leibniz fala em uma “colônia de almas”, consciências, Berkeley na “mente de Deus” ou a “mente coletiva do universo” e a dita ciência afirma, não menos estranhamente, em uma “coleção de cargas elétricas em intenso movimento”. Mas o que, de fato, sabemos sobre este tema é que as coisas não são o que parecem ser e que há uma realidade por trás disso que aparece.