segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O apolíneo


Nietzsche, na tentativa de remontar as origens da tragédia, debruça-se sobre os impulsos artísticos da natureza que se evidenciavam na alma dos gregos. E por isso vê a necessidade de explicitar o contexto cultural que levou os gregos a desenvolverem o impulso apolíneo e o dionisíaco, falando, então, de uma sabedoria popular que seria a chave para a compreensão do apolíneo: A sabedoria de um demônio chamado Sileno. Este, quando instado a responder qual era a melhor coisa para o homem, respondeu: “não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” (NIETZSCHE, 2007, p. 33). Diante de tamanho pessimismo o grego sentiu o horror da vida, sua efemeridade e vaidade, então criou para si todo o Olimpo com seus deuses para que a vida que era impossível ao homem pudesse ser legitimada pelos deuses, para que os gregos pudessem sentir a vida elevada a máxima potência, revendo-se através de um “espelho transfigurador” (IDEM, p. 34) numa esfera superior e, deste modo, sentirem-se glorificados. Assim, toda teogonia deriva do impulso apolíneo da beleza que garante à vida a superação dos sofrimentos através do tão belo reflexo dos deuses que agora se revelam.
Destarte podemos entrever, pelo que já foi dito, algumas características do deus Apolo. Pois ele é a divindade que reina sobre a bela aparência, que tem o poder de conformar ou de configurar alguma coisa na medida certa, com a simetria que convém aquilo que é belo. É a divindade da luz e o deus divinatório que está no oráculo de Delfos, o qual, como divindade ética diz ao homem: “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em demasia” (IDEM, p. 37), ou seja, conhece tuas limitações pois tu és somente um homem, saibas onde tu podes chegar, não afrontes os deuses, vive moderada e prudentemente. A medida, o limite, o contorno, o indivíduo, o controle de si, são aspectos abarcados pelo apolíneo, pois Apolo é o deus da forma, da figura, que perpassa a arte e a alma grega. Então separa o que é uno, o que é híbrido e dá contornos (princípio de individuação), que multiplica e singulariza o Uno essencial e, assim, cobre-nos com o “véu de Maia ” (IDEM, p. 28).




Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A conta

Às sete horas da manhã acordou com a lembrança vaga do sonho que tivera naquela noite. Esforçava-se para encontrar no simbolismo do sonho um “significado maior”. Sempre falava assim, com o lábio ainda molhado de cerveja, quando se dirigia a um de seus poucos amigos mais chegados e conversavam sobre as coisas. Sempre bebia três garrafas de cerveja, sempre no final do expediente, sempre na quinta-feira.
– Não sei... Mas na quinta me sinto melhor. Dizia.
Mas a verdade era que sua mulher tinha reuniões semanais na quinta-feira e só chegava após ele já estar na cama, fato que evitava conflitos desgastantes por ele ter bebido. Ela sabia, todos sabiam.
Pensava no dia que teria pela frente e esquecia-se do sonho. Ouvia o barulho do café sendo posto na mesa e, por um momento, estranhava o mundo como se a ruptura com o sonho tivesse deixado seqüelas na sua alma.
– Amor, amor... Sua mulher o chamou pensando que ele ainda dormia.
Estremeceu.
− A conta, não esquece hein! Continuou.
Ele levantou, tomou seu café rapidamente e saiu de casa, acendendo o cigarro que escondia cuidadosamente na caixa do tênis Nike de caminhada que comprara, mas que nunca tinha usado. Sabia que Nike era uma palavra grega que significava vitória e sentiu-se bem ao comentar com a vendedora na ocasião da compra:
− Nike... Sabe, é uma palavra grega. Significa vitória sabia?
A vendedora obviamente interessada rasgou-se em elogios. No fundo ele sabia também que isso fazia parte do ofício de vendedor, mas mesmo assim se sentiu bem. Na volta do trabalho devia pagar a conta de telefone, não podia esquecer. Sentou no ônibus. A sua direita sentava uma mulher magra que ele nunca viu o rosto, mas sentia que era a mesma mulher de tantas outras idas. Havia um rapaz de camisa listrada, sempre de

camisa listrada. Listras grossas alternadas com finas. Azul, preto e branco, verde, preto e branco, amarelo preto e branco...
– Deve ter uma coleção de camisas pólo listradas, ou será uma farda de trabalho? Pensou.
Um casal que ora discutia ora ria, aquelas conversas ao telefone que se escutava sem querer e aqueles cabelos ainda pastosos da noite passada. Sempre as mesmas figuras! Desceu do ônibus e sentiu a firmeza do solo no pé e o vento no rosto ainda inchado de sono. Da paisagem urbana extraía belezas que o acompanhavam no seu caminho. Não suportava que a vida fosse tão óbvia,
− Não pode ser só isso! Dizia quase se fazendo escutar por alguém que passava por ele na hora.
Sentou-se em sua cadeira. Automatismo sem poesia, automatismo sem poesia, automatismo sem poesia, automatismo sem poesia. Respirou fundo e saiu. Se não fosse a fumaça só teria vazio no peito. Mais um cigarro. Entre olhadelas para as mulheres que passavam seguia seu caminho. O fato de ter escolhido uma mulher para si o atormentava,
− Poderia ter conseguido uma mulher melhor? Dizia para si mesmo.
Mas a resposta trazia certa consolação, pois era óbvio que poderia.
− Aquela namoradinha que tive poderia ter mudado tudo...
Sim, sentia-se poderoso e fraco ao mesmo tempo. As escolhas que fazia traziam conseqüências que não podiam ser controladas e, às vezes, no momento da escolha não estava pronto. Procurou um trocado no bolso para o mendigo aleijado que lhe estendera a mão. Não achou. Pediu desculpas e andou. Tinha algo a fazer: Pagar a conta de telefone! Esta se encontrava, dobrada várias vezes, dentro de sua carteira. Tirou-a da carteira e a segurou na mão suada. Lembrou das várias ligações que sua sogra fizera para suas amigas beatas e se irritou. Amassou o papel na mão. Seguiu, confiante e certo, em busca de seu objetivo: pagar a conta de telefone! Não havia mais nada a fazer.

− Boa noite! Quero pagar a conta de telefone. Disse ele depois de imaginar umas quatro diferentes formas de dizer isso.
Abriu o papel da conta, estava suado, desbotado. Se o papel tivesse sentimentos diria estar angustiado. Pagou. Sorriu para a moça que o atendeu e saiu. De repente pára na porta do prédio, volta-se para trás e pergunta:
− Quando a gente sonha com florestas é bom?
− Florestas? Pergunta a moça estranhando a pergunta.
− Sim, florestas belas, verdes...
− Não sei, respondeu a moça.
Quando estava saindo, a moça diz:
− Poderia ser tudo diferente!
Será que tinha sido com ele? Melhor não voltar e perguntar. Ainda que não tivesse sido com ele, aquela frase fazia sentido para ele e isso era única coisa que importava. Pensou mesmo na possibilidade de ter sido um anjo que falara.
− Ou talvez um demônio... Sussurrou.

Progretaire

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O problema da simultaneidade dos prazeres e dores no Filebo de Platão



Só existe prazer ou dor se há também um ser que o sinta? Acredito que Platão responderia que não. Pois, embora o prazer e a dor necessitem da sensação para serem percebidos no nível da dóxa, no nível inteligível não há necessidade de sentir dor ou prazer para dar-lhes existência. A idéia de prazer é eterna e prescinde da sensação de prazer, o mesmo ocorrendo com a idéia de dor.

De fato não podemos sentir dor e prazer simultaneamente, visto que, embora aja no corpo muitos canais de receptividade das afecções, só há uma alma que transforma essas afecções em prazeres ou dores. Portanto já sabemos que não se pode sentir dor e prazer ao mesmo tempo e certamente Platão também o sabia, mas então o que ele quer dizer quando Sócrates afirma que existem misturas de partes iguais e desiguais de dores e prazeres? (46d) Entendo que Platão tinha em mente que no momento em que existem afecções, fontes de prazeres e dores, atuando juntamente no corpo, a afecção que prevalecesse “na balança” seria transformada pela alma, seja ela dor ou prazer. Porém isso não impede de maneira alguma que a afecção suplantada permaneça atuando no corpo sem ser sentida como prazer ou dor. E desde que aja a atuação da fonte geradora de dor ou prazer, embora não a sintamos, compreendemos inteligivelmente que há dor ou prazer em nosso corpo. Pois, nós todos sabemos, que a natureza é regida pela lei da causa e do efeito e quem dissesse que existe a atuação de uma causa sem um efeito, ou seja, se dissesse que o calor do sol não esquenta uma pedra exposta ao sol do meio-dia ou que se um ovo cair da minha mão em direção ao chão sem nenhuma interferência direta ele não quebrará, nós todos diríamos que essa pessoa não diz algo razoável. Do mesmo modo, uma afecção que gera especificamente uma dor, ainda que não seja captada por nossos sentidos, que por sinal são falhos, traz como conseqüência natural, senão a sensação de dor, a idéia inelutável de dor.

Por conseguinte, se há duas afecções, uma de dor e outra de prazer, e o prazer é mais forte, ele é transformado em sentimento pela alma e o homem que o sente não dá conta, pela percepção dos sentidos, que há dor, mas esse mesmo homem pode, através do intelecto, inferir a existência da idéia de dor (não o sentimento de dor) em seu corpo. Imaginemos um mendigo com hanseníase que tem seus cotovelos roídos por ratos durante o seu sono, a doença irá impedi-lo de sentir a dor, que nada mais é que um mecanismo de defesa do corpo, mas se ao despertar ele ver que existem ratos o roendo, certamente ele irá espantá-los, pois embora não sinta a dor, ele tem a idéia de dor.

Mas alguém dirá com razão: e quando há afecções de prazeres e dores na mesma medida, qual delas será sentida? Suponho que nesse caso nem uma, nem outra, visto que elas se anulariam por serem forças eqüipolentes e só as compreenderíamos no nível das idéias, e então, poderíamos falar de um terceiro estado da alma que é totalmente diverso de prazer e de dor.

Portanto não é estranho a Platão pensar que existem prazeres misturados a dores simultaneamente, mas somente enquanto idéia e não no tocante a sensibilidade. Pois só somos capazes, no nível da dóxa e da sensibilidade corruptível, de sentirmos o prazer ou a dor decorrente de uma afecção, restando para a outra a apreensão via inteligível.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A physiología como condição para a serenidade da alma na obra de Epicuro.



A physiología ou o estudo da natureza é, para Epicuro, a fonte de uma vida serena (DL, X, 37). Através do estudo da phýsis são reunidas as condições necessárias para tranqüilizar a alma frente aos temores, superstições e expectativas gerados, principalmente, pelos mitos e pela ignorância dos fatos que ocorrem no momento da morte e dos demais fenômenos naturais. Pois tal investigação elimina a fonte da perturbação, dando a alma uma tranqüilidade perfeita, colocando-a no estado que Epicuro chama de ataraxía (DL, X, 85).


Porém, alguém poderia considerar que as conclusões das investigações phisiológicas dos tempos de Epicuro poderiam ser tão falhas, da perspectiva da ciência atual, quanto as da compreensão mítica do mundo, de modo que a certeza dos epicuristas poderia ser infundada e, portanto, poderia trazer as mesmas perturbações a alma que os mitos. Entretanto o método investigativo de Epicuro consistia no levantamento de hipóteses acerca dos fenômenos da natureza, fazendo analogias entre o que é perceptível e o que não é, de modo que mesmo que uma hipótese fosse falsa ela não seria incoerente com o conjunto dos fenômenos naturais (DL, X, 95), ao contrário do que ocorre na explicação mítica do mundo que não parte da própria natureza para explicá-la, mas das narrativas míticas. Estas são rejeitadas, não pelo fato de ter uma concepção errada da natureza, mas por tentar explicar a natureza de uma perspectiva errônea. Posto que a investigação da phýsis tem por fim a serenidade da alma, não é necessário saber positivamente como se dão os fenômenos, mas apenas negativamente, ou seja, que eles não são produzidos através de intervenções divinas (CONCHE, 1977, p. 38). Assim, todo fenômeno é, para Epicuro, um fenômeno natural.

A physiología tem, portanto, o único fim de tranqüilizar a alma, finalidade esta que se expressa claramente na máxima XI, em que Epicuro nos diz:
Se não nos perturbássemos com nossas dúvidas a respeito dos fenômenos celestes, e se não receássemos que a morte significasse alguma coisa para nós, e também não nos perturbássemos com nossa incapacidade de discernir os limites dos sofrimentos e desejos, não teríamos necessidade da ciência natural.
(DL, X, XI)

Nesse passo vemos que a necessidade da physiología está no fato de que o homem carrega consigo sofrimentos que não precisa levar, pois poderiam ser suprimidos pelo estudo da phýsis. Observamos aqui três características inerentes ao homem de qualquer tempo e lugar, pois, primeiramente, todo homem, ainda que seja versado nos saberes físicos, desconhece muitos fenômenos da natureza que o cerca, gerando dúvidas que com freqüência são dirimidas pelas explicações míticas ou religiosas, as quais por um momento podem tranqüilizar a alma do homem, mas que invariavelmente trazem consigo temores e perturbações maiores que os dantes superados; e no pano de fundo das ações dos homens ainda permanece o medo constante do que há para além da vida, e é aqui que reina todas as espécies de fabulações que trazem consigo temores que vez ou outra afligem e perturbam as nossas crédulas almas; e, por último, o fato de que não conhecemos nossa própria natureza o suficiente para sabermos os limites dos sofrimentos e dos desejos.

Entretanto, a investigação da natureza pode sanar tais perturbações anímicas na medida em que o homem se volte para um modo de vida que privilegie o saber oriundo da phýsis. Abandonar os mitos é o primeiro passo. Pois como afirma J. P. Vernant: “para o pensamento mítico, a experiência cotidiana se esclarecia e adquiria sentido em relação aos atos exemplares praticados pelos deuses ‘na origem’” (VERNANT, 2002, p. 110). E assim, os mitos em sua tentativa de compreender a natureza, ao invés de sanar os sofrimentos e temores dos homens diante daquilo que não conhecem, acabaram suscitando mais temores e perturbações ainda. Quando as narrativas míticas criaram os deuses para explicar fatos naturais com o fim de apaziguar a alma amedrontada do homem, ao mesmo tempo trouxeram os possíveis castigos divinos que novamente colocaram os homens em estado de perturbação, porém essas concepções concernentes aos deuses não estão de acordo com a noção que a natureza traçou (hypegráfe) na alma do homem (DL, X, 123). Por conseguinte era necessário redirecionar o homem para a natureza, que não era outra senão a sua própria natureza, evidenciar a posição de preponderância dela em relação aos artifícios do homem, à religião, à política e a todas as outras convenções sociais. Estabelecer a phýsis como parâmetro do agir do homem, pois era dela que o sábio deveria tirar a sua sabedoria, aquilo que deve escolher e aquilo que deve rejeitar deve ser indicado pelo conhecimento de sua própria phýsis. Assim o homem diante daquilo que não conhece não mais recorreria ao mito, mas passaria a investigar a natureza e tiraria dela uma hipótese coerente e racional que faria com que ele recobrasse o seu estado de placidez e tranqüilidade.

Libertando-se da interferência das narrativas míticas o homem encontraria explicações plausíveis acerca dos fenômenos naturais, inclusive a respeito da morte. Epicuro na carta a Meneceu diz que a morte “nada é para nós” (DL, X, 124), tendo em vista que a alma (psyché), no momento da morte, dissolver-se-ia em seus átomos componentes, efetivando assim, a lei de geração e corrupção que vigora em todo o universo. Deste modo a morte não deveria ser motivo de temor para o homem, visto que, nela não há sensibilidade e, portanto não há dor.
Epicuro destaca também que a physiología desempenha um papel primordial na nossa capacidade de discernir “os limites” dos desejos e sofrimentos, pois, conhecidos os limites do sofrimento, ou seja, sabendo, por exemplo, que uma dor contínua não dura muito na carne (DL, X, IV), poderemos desfrutar ainda dos prazeres que vez ou outra sobressaem à dor, por outro lado, se não conhecemos tais limites, a perturbação causada por essa ignorância nos levará a suplantar esses possíveis prazeres com a expectativa de sofrer ininterruptamente. Um desses possíveis prazeres é aquele gerado pela lembrança de bons momentos (cf. DL, X, 22). Sabendo que o final do sofrimento é o início do prazer, o sábio poderá, também, escolher uma dor que trará, em breve, um prazer maior (DL, X, 129), de modo que a physiología se relaciona com o modo como agimos em nossa vida, que deve ser uma vida segundo a natureza, ou seja, um modo de viver que se paute nos parâmetros encontrados através da investigação da phýsis. Por sua vez, o conhecimento dos limites dos desejos é de suma importância para a vida do sábio, pois o desejo ilimitado ou imoderado causará, em vez dos prazeres esperados, sofrimento e dor. É o conhecimento de si, de sua phýsis que o levará a fazer as escolhas certas, que trazem prazer e não dor.

Portanto através da physiología o sábio garante a sua imperturbabilidade (ataraxía), um estado de alma para o qual Epicuro se utiliza de uma imagem poética para descrevê-lo: galenismós, palavra grega derivada de galene que significa a “calma do mar” (ISIDRO PEREIRA, 1998, p. 110) indicando que a ataraxía é um estado de alma tal qual o mar quando se encontra sereno.


REFERÊNCIAS
Vernant, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel. 2002.
Conche, M. 1977. Epicure: Lettres et Maximes. Paris: éd. De Mégare.
Laêrtios, D. 1988. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: UNB.
Isidro Pereira, S.J. Dicionário Grego – Português e Português – Grego, 8ª edição, Livraria A.I. Braga, 1998.