quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A physiología como condição para a serenidade da alma na obra de Epicuro.



A physiología ou o estudo da natureza é, para Epicuro, a fonte de uma vida serena (DL, X, 37). Através do estudo da phýsis são reunidas as condições necessárias para tranqüilizar a alma frente aos temores, superstições e expectativas gerados, principalmente, pelos mitos e pela ignorância dos fatos que ocorrem no momento da morte e dos demais fenômenos naturais. Pois tal investigação elimina a fonte da perturbação, dando a alma uma tranqüilidade perfeita, colocando-a no estado que Epicuro chama de ataraxía (DL, X, 85).


Porém, alguém poderia considerar que as conclusões das investigações phisiológicas dos tempos de Epicuro poderiam ser tão falhas, da perspectiva da ciência atual, quanto as da compreensão mítica do mundo, de modo que a certeza dos epicuristas poderia ser infundada e, portanto, poderia trazer as mesmas perturbações a alma que os mitos. Entretanto o método investigativo de Epicuro consistia no levantamento de hipóteses acerca dos fenômenos da natureza, fazendo analogias entre o que é perceptível e o que não é, de modo que mesmo que uma hipótese fosse falsa ela não seria incoerente com o conjunto dos fenômenos naturais (DL, X, 95), ao contrário do que ocorre na explicação mítica do mundo que não parte da própria natureza para explicá-la, mas das narrativas míticas. Estas são rejeitadas, não pelo fato de ter uma concepção errada da natureza, mas por tentar explicar a natureza de uma perspectiva errônea. Posto que a investigação da phýsis tem por fim a serenidade da alma, não é necessário saber positivamente como se dão os fenômenos, mas apenas negativamente, ou seja, que eles não são produzidos através de intervenções divinas (CONCHE, 1977, p. 38). Assim, todo fenômeno é, para Epicuro, um fenômeno natural.

A physiología tem, portanto, o único fim de tranqüilizar a alma, finalidade esta que se expressa claramente na máxima XI, em que Epicuro nos diz:
Se não nos perturbássemos com nossas dúvidas a respeito dos fenômenos celestes, e se não receássemos que a morte significasse alguma coisa para nós, e também não nos perturbássemos com nossa incapacidade de discernir os limites dos sofrimentos e desejos, não teríamos necessidade da ciência natural.
(DL, X, XI)

Nesse passo vemos que a necessidade da physiología está no fato de que o homem carrega consigo sofrimentos que não precisa levar, pois poderiam ser suprimidos pelo estudo da phýsis. Observamos aqui três características inerentes ao homem de qualquer tempo e lugar, pois, primeiramente, todo homem, ainda que seja versado nos saberes físicos, desconhece muitos fenômenos da natureza que o cerca, gerando dúvidas que com freqüência são dirimidas pelas explicações míticas ou religiosas, as quais por um momento podem tranqüilizar a alma do homem, mas que invariavelmente trazem consigo temores e perturbações maiores que os dantes superados; e no pano de fundo das ações dos homens ainda permanece o medo constante do que há para além da vida, e é aqui que reina todas as espécies de fabulações que trazem consigo temores que vez ou outra afligem e perturbam as nossas crédulas almas; e, por último, o fato de que não conhecemos nossa própria natureza o suficiente para sabermos os limites dos sofrimentos e dos desejos.

Entretanto, a investigação da natureza pode sanar tais perturbações anímicas na medida em que o homem se volte para um modo de vida que privilegie o saber oriundo da phýsis. Abandonar os mitos é o primeiro passo. Pois como afirma J. P. Vernant: “para o pensamento mítico, a experiência cotidiana se esclarecia e adquiria sentido em relação aos atos exemplares praticados pelos deuses ‘na origem’” (VERNANT, 2002, p. 110). E assim, os mitos em sua tentativa de compreender a natureza, ao invés de sanar os sofrimentos e temores dos homens diante daquilo que não conhecem, acabaram suscitando mais temores e perturbações ainda. Quando as narrativas míticas criaram os deuses para explicar fatos naturais com o fim de apaziguar a alma amedrontada do homem, ao mesmo tempo trouxeram os possíveis castigos divinos que novamente colocaram os homens em estado de perturbação, porém essas concepções concernentes aos deuses não estão de acordo com a noção que a natureza traçou (hypegráfe) na alma do homem (DL, X, 123). Por conseguinte era necessário redirecionar o homem para a natureza, que não era outra senão a sua própria natureza, evidenciar a posição de preponderância dela em relação aos artifícios do homem, à religião, à política e a todas as outras convenções sociais. Estabelecer a phýsis como parâmetro do agir do homem, pois era dela que o sábio deveria tirar a sua sabedoria, aquilo que deve escolher e aquilo que deve rejeitar deve ser indicado pelo conhecimento de sua própria phýsis. Assim o homem diante daquilo que não conhece não mais recorreria ao mito, mas passaria a investigar a natureza e tiraria dela uma hipótese coerente e racional que faria com que ele recobrasse o seu estado de placidez e tranqüilidade.

Libertando-se da interferência das narrativas míticas o homem encontraria explicações plausíveis acerca dos fenômenos naturais, inclusive a respeito da morte. Epicuro na carta a Meneceu diz que a morte “nada é para nós” (DL, X, 124), tendo em vista que a alma (psyché), no momento da morte, dissolver-se-ia em seus átomos componentes, efetivando assim, a lei de geração e corrupção que vigora em todo o universo. Deste modo a morte não deveria ser motivo de temor para o homem, visto que, nela não há sensibilidade e, portanto não há dor.
Epicuro destaca também que a physiología desempenha um papel primordial na nossa capacidade de discernir “os limites” dos desejos e sofrimentos, pois, conhecidos os limites do sofrimento, ou seja, sabendo, por exemplo, que uma dor contínua não dura muito na carne (DL, X, IV), poderemos desfrutar ainda dos prazeres que vez ou outra sobressaem à dor, por outro lado, se não conhecemos tais limites, a perturbação causada por essa ignorância nos levará a suplantar esses possíveis prazeres com a expectativa de sofrer ininterruptamente. Um desses possíveis prazeres é aquele gerado pela lembrança de bons momentos (cf. DL, X, 22). Sabendo que o final do sofrimento é o início do prazer, o sábio poderá, também, escolher uma dor que trará, em breve, um prazer maior (DL, X, 129), de modo que a physiología se relaciona com o modo como agimos em nossa vida, que deve ser uma vida segundo a natureza, ou seja, um modo de viver que se paute nos parâmetros encontrados através da investigação da phýsis. Por sua vez, o conhecimento dos limites dos desejos é de suma importância para a vida do sábio, pois o desejo ilimitado ou imoderado causará, em vez dos prazeres esperados, sofrimento e dor. É o conhecimento de si, de sua phýsis que o levará a fazer as escolhas certas, que trazem prazer e não dor.

Portanto através da physiología o sábio garante a sua imperturbabilidade (ataraxía), um estado de alma para o qual Epicuro se utiliza de uma imagem poética para descrevê-lo: galenismós, palavra grega derivada de galene que significa a “calma do mar” (ISIDRO PEREIRA, 1998, p. 110) indicando que a ataraxía é um estado de alma tal qual o mar quando se encontra sereno.


REFERÊNCIAS
Vernant, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel. 2002.
Conche, M. 1977. Epicure: Lettres et Maximes. Paris: éd. De Mégare.
Laêrtios, D. 1988. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: UNB.
Isidro Pereira, S.J. Dicionário Grego – Português e Português – Grego, 8ª edição, Livraria A.I. Braga, 1998.

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