sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A conta

Às sete horas da manhã acordou com a lembrança vaga do sonho que tivera naquela noite. Esforçava-se para encontrar no simbolismo do sonho um “significado maior”. Sempre falava assim, com o lábio ainda molhado de cerveja, quando se dirigia a um de seus poucos amigos mais chegados e conversavam sobre as coisas. Sempre bebia três garrafas de cerveja, sempre no final do expediente, sempre na quinta-feira.
– Não sei... Mas na quinta me sinto melhor. Dizia.
Mas a verdade era que sua mulher tinha reuniões semanais na quinta-feira e só chegava após ele já estar na cama, fato que evitava conflitos desgastantes por ele ter bebido. Ela sabia, todos sabiam.
Pensava no dia que teria pela frente e esquecia-se do sonho. Ouvia o barulho do café sendo posto na mesa e, por um momento, estranhava o mundo como se a ruptura com o sonho tivesse deixado seqüelas na sua alma.
– Amor, amor... Sua mulher o chamou pensando que ele ainda dormia.
Estremeceu.
− A conta, não esquece hein! Continuou.
Ele levantou, tomou seu café rapidamente e saiu de casa, acendendo o cigarro que escondia cuidadosamente na caixa do tênis Nike de caminhada que comprara, mas que nunca tinha usado. Sabia que Nike era uma palavra grega que significava vitória e sentiu-se bem ao comentar com a vendedora na ocasião da compra:
− Nike... Sabe, é uma palavra grega. Significa vitória sabia?
A vendedora obviamente interessada rasgou-se em elogios. No fundo ele sabia também que isso fazia parte do ofício de vendedor, mas mesmo assim se sentiu bem. Na volta do trabalho devia pagar a conta de telefone, não podia esquecer. Sentou no ônibus. A sua direita sentava uma mulher magra que ele nunca viu o rosto, mas sentia que era a mesma mulher de tantas outras idas. Havia um rapaz de camisa listrada, sempre de

camisa listrada. Listras grossas alternadas com finas. Azul, preto e branco, verde, preto e branco, amarelo preto e branco...
– Deve ter uma coleção de camisas pólo listradas, ou será uma farda de trabalho? Pensou.
Um casal que ora discutia ora ria, aquelas conversas ao telefone que se escutava sem querer e aqueles cabelos ainda pastosos da noite passada. Sempre as mesmas figuras! Desceu do ônibus e sentiu a firmeza do solo no pé e o vento no rosto ainda inchado de sono. Da paisagem urbana extraía belezas que o acompanhavam no seu caminho. Não suportava que a vida fosse tão óbvia,
− Não pode ser só isso! Dizia quase se fazendo escutar por alguém que passava por ele na hora.
Sentou-se em sua cadeira. Automatismo sem poesia, automatismo sem poesia, automatismo sem poesia, automatismo sem poesia. Respirou fundo e saiu. Se não fosse a fumaça só teria vazio no peito. Mais um cigarro. Entre olhadelas para as mulheres que passavam seguia seu caminho. O fato de ter escolhido uma mulher para si o atormentava,
− Poderia ter conseguido uma mulher melhor? Dizia para si mesmo.
Mas a resposta trazia certa consolação, pois era óbvio que poderia.
− Aquela namoradinha que tive poderia ter mudado tudo...
Sim, sentia-se poderoso e fraco ao mesmo tempo. As escolhas que fazia traziam conseqüências que não podiam ser controladas e, às vezes, no momento da escolha não estava pronto. Procurou um trocado no bolso para o mendigo aleijado que lhe estendera a mão. Não achou. Pediu desculpas e andou. Tinha algo a fazer: Pagar a conta de telefone! Esta se encontrava, dobrada várias vezes, dentro de sua carteira. Tirou-a da carteira e a segurou na mão suada. Lembrou das várias ligações que sua sogra fizera para suas amigas beatas e se irritou. Amassou o papel na mão. Seguiu, confiante e certo, em busca de seu objetivo: pagar a conta de telefone! Não havia mais nada a fazer.

− Boa noite! Quero pagar a conta de telefone. Disse ele depois de imaginar umas quatro diferentes formas de dizer isso.
Abriu o papel da conta, estava suado, desbotado. Se o papel tivesse sentimentos diria estar angustiado. Pagou. Sorriu para a moça que o atendeu e saiu. De repente pára na porta do prédio, volta-se para trás e pergunta:
− Quando a gente sonha com florestas é bom?
− Florestas? Pergunta a moça estranhando a pergunta.
− Sim, florestas belas, verdes...
− Não sei, respondeu a moça.
Quando estava saindo, a moça diz:
− Poderia ser tudo diferente!
Será que tinha sido com ele? Melhor não voltar e perguntar. Ainda que não tivesse sido com ele, aquela frase fazia sentido para ele e isso era única coisa que importava. Pensou mesmo na possibilidade de ter sido um anjo que falara.
− Ou talvez um demônio... Sussurrou.

Progretaire

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