sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Um herói local

É domingo de noite. Um dia ruim que evoca memórias de idas, vindas e estada entediantes que se concretizavam nos frios bancos de uma igreja. Quando se é pequeno não se tem escolha. O jogo de bola interrompido pelo grito da mãe: “Tá na hora de ir pra igreja, vem tomar banho menino!” E quando menos se espera você está pensando em qualquer coisa longe de pensamentos piedosos, contando as horas para ir pra casa. Mas enfim, essa história não é sobre mim e minha infância pouco interessante, mas tem a ver com o jogo de bola, não especificamente sobre o jogo, mas o que vem acontecendo onde ele se realizava constantemente a despeito da raiva dos vizinhos: A Rua Praia de Sibaúma.

É uma rua comum, não acontece nada de inusitado. Nem mesmo os jogos de bola acontecem mais. A oposição venceu. Nela vivem pessoas que destoam de seu tempo, místicas, amedrontadas com olhos arregalados e pescoço esticado. Só resta uma coisa realmente digna de menção: por acaso a rua tem sido palco para um espetáculo que ninguém gostaria de presenciar.

Nos primeiros dias o espanto levava as pessoas a saírem de casa para ver. Talvez fosse coisa do demônio. – Só um minuto, peço só um minuto para um comentário: como pode ainda se cogitar a possibilidade... e sem nenhuma vergonha, nos dia de hoje, na cara lisa, de se pensar que uma coisa dessa saiu dos quintos dos infernos?! Mas enfim, dava para se pensar.

Soava forte e estranhamente aos ouvidos, aproximando-se deixava um rasto de um líquido viscoso para trás. Fedia, fedia muito. Porém o que mais impressionava era o seu olhar: com a cabeça calva abaixada seus antolhos encobriam os seus olhos com trevas. Uma alma feminina que se escondia sob um grotesco corpúsculo atarraxado. Tudo que queria: ser compreendido, ou, talvez, compreender-se. A Rua Praia de Sibaúma era seu palco, nela mostrava-se como realmente era...

Para chegar ao clímax de sua realização pessoal era preciso de ajuda. Já tentara, mas nunca conseguira sozinho. Felicidade era que não custava muito e, assim, não se preocupava com a quantidade, pois tinha seu salário de zelador e isso bastava. Para comprar cachaça de pouco se precisa, dos pobres é seu reino.

Todos os viciados do bairro já o espancaram, chutes, socos e até voadoras, só por diversão. Acho que alguns já o comeram, porém ele só teve um amor verdadeiro. Era um negão, servente de pedreiro. Criatura parruda, feio como o cão. Inclusive tinha presas como um porco do mato. Um dia, eles se beijaram apaixonadamente próximo a um orelhão, no fim da tarde. Cena romântica. Depois disso, eles saíram pelo bosque de mãos dadas. Uma rapariga rejeitada e seu primeiro amor.

Essa figura terrível e assustadora passou lentamente a fazer parte do cotidiano dos moradores da rua. Até as crianças já não o temiam. Os crentes já não tentavam mais expulsar seu demônio. E hoje o que era estranhamento se tornou hábito. Em seu cavalo branco, passa pela rua todas as noites do dia do senhor, com os cabelos esvoaçantes no frio da noite. Uma noiva abandonada no altar que mulher da vida foi se tornando a cada segundo após esse fatídico momento. Vassouras, rodos e baldes a parte, sente-se elevado ao limiar do paraíso até que acorda... Carrapichos na barra da bermuda cagada, vômito na camisa, sem lembrar-se de nada e um boy, de longe, gritando: - Gogó, Gogó, pegue na minha e balance!!!

Não preferindo acreditar nas velhas: “Deixe essa vida Gogó. Vá p’ruma igreja! Os maconheiro tão judiando de tu, homi!” Ele segue sua lida, todo domingo, cantando amores juvenis, recendendo a álcool, babando-se todo, caindo pelo chão, se rasgando... Enquanto isso as pessoas em suas casas, moradores honestos e trabalhadores, em frente da TV, já acomodadas, já acostumadas, comentam:

- Quando ele não tá bebo, nem parece esse tipo de gente que faz essas coisas.

- É, eu já vi ele bom, conversa com a gente, nem parece viado. Não tem quem diga...

Segunda. Farda de trabalho. Vassoura na mão. Olhar sério e distante. Gogó: um herói local.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O juízos sintéticos a priori na filosofia de Kant


Após ler algumas partes do livro "Prolegômenos a toda metafísica futura" compreendi alguns pontos importantes da filosofia de Kant que acho que valem apena ser escritos aqui a título de nota.
As fontes de toda metafísica como o próprio nome indica devem estar além de toda experiência e, portanto, devem ser oriundos da razão pura, ou em outras palavras, a priori. Um juízo metafísico para ter alguma validade deve ser necessário, absoluto. Conhecemos juízos desse tipo: os juízos analíticos, os quais se caracterizam pela ausência de produção de conhecimento. Tais juízos são apenas explicativos e não acrescentam conhecimento algum, Ex.: Os corpos são extensos. Nesse exemplo vemos que o predicado "extensos" já está presente no conceito de corpo, não nos informado nada além do que já estava posto no sujeito. Segue-se daí que todos os juízos analíticos derivam do princípio de contradição, pois não se pode afirmar o sujeito e negar o predicado. De modo que esses juízos analíticos não servem para fundamentar a metafísica, uma vez que ela precisa de juízos que, ao mesmo tempo, sejam necessários e acrescentem conhecimentos.

Hume falhou ao julgar que a "aparência" de necessidade que existem nas conexões de fato se devam ao hábito da experiência. Faltou-lhe pensar nos juízos sintéticos a priori. Um juízo sintético se caracteriza pela adição (síntese) de conhecimento que proporciona, entretanto a maioria deles são a posteriori. O que Kant precisa para fundamentar a ciência da metafísica são juízos sintéticos, porém, a priori. Seriam, portanto, aqueles que preencheriam os requisitos de necessidade/aprioridade e síntesi de conhecimento. Restou a Kant indagar sobre o princípio em que esses juízos se fundamentariam, posto que os analíticos se fundam no princípio da contradição. A resposta estava nas formas a priori da sensibilidade (tempo e espaço), elas assegurariam a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, uma vez que a intuição (representação imediata) de tempo e espaço é anterior (a priori) a toda experiência sensível e a torna possível.

Os juízos sintéticos a priori têm como consequência uma das maiores revoluções do pensamento humano, a qual se compara com a revolução copernicana: os homens percebem o mundo de acordo com estruturas cognitivas predeterminadas. Nós não somos apenas espelhos que refletem a realidade, mas a vemos assim porque somos humanos, porque temos estruturas no pensamento que nos fazem perceber um mundo à maneira dos homens.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O pirotécnico Zacarias


"E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela-d'alva.”

(Jó, XI, 17)

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?

A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo - o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.

Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado.

A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma palavra.

Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.

A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.

Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.

- Simplício Santana de Alvarenga!

- Presente!

Senti rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.

- "Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao tempo tirem os seus chapéus!”

(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.)

- Simplício Santana de Alvarenga!

- Não está?

- Tire a mão da boca, Zacarias!

- Quantos são os continentes?

- E a Oceania?

Dos mares da China não mais virão as quinquilharias.

A professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam D. Josefina a ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de barbante, quase encostada no teto.

- Simplício Santana de Alvarenga!

- Meninos, amai a verdade!

A noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu.

Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio.

O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite que o branco desceria até a terra.

As moças que vinham no carro deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o melhor destino a ser dado ao cadáver.

A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de homens.

Havia silêncio, mais sombras que silêncio, porque os rapazes não mais discutiam baixinho. Falavam com naturalidade, dosando a gíria.

Também o ambiente repousava na mesma calma e o cadáver - o meu ensangüentado cadáver - não protestava contra o fim que os moços lhe desejavam dar.

A idéia inicial, logo rejeitada, consistia em me transportar para a cidade, onde me deixariam no necrotério. Após breve discussão, todos os argumentos analisados com frieza, prevaleceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E havia ainda o inconveniente das moças não se conformarem em viajar ao lado de um defunto. (Neste ponto eles estavam redonda- mente enganados, como explicarei mais tarde.)

Um dos moços, rapazola forte e imberbe - o único que se impressionara com o acidente e permanecera calado e aflito no decorrer dos acontecimentos -, propôs que se deixassem as garotas na estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não deram importância à proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho - assim lhe chamavam - e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas lindas pequenas que os acompanhavam.

O rapazola notou a bobagem que acabara de proferir e, sem encarar de frente os componentes da roda, pôs-se a assoviar, visivelmente encabulado.

Não pude evitar a minha imediata simpatia por ele, em virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada aos que decidiam a minha sorte.

Afinal, as longas caminhadas cansam indistintamente defuntos e vivos. (Este argumento não me ocorreu no momento.)

Discutiram em seguida outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício, um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue, lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a polícia, sempre ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso.

Mas aquele seria um dos poucos desfechos que não me interessavam.

Ficar jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas, tornava-se para mim uma idéia insuportável. E ainda: o meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo e o meu nome não ocuparia as manchetes dos Jornais.

Não, eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno necrológio no principal matutino da cidade. Precisava agir rápido e decidido:

- Alto lá! Também quero ser ouvido!

Jorginho empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado, enquanto os seus amigos, algo admirados por verem um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me.

Sempre tive confiança na minha faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões. Não sei se pela força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia qualquer disputa dependente de argumentação segura e irretorquível.

A morte não extinguira essa faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça. Após curto debate, no qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos, sem encontrar uma saida que atendesse, a contento, às minhas razões e ao programa da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuidos aos vivos.

Se a um deles não ocorresse uma sugestão, imediatamente aprovada, teríamos permanecido no impasse. Propunha incluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu atropelamento.

Entretanto, outro obstáculo nos conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes. Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado. O mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão no grupo encontrou a fórmula conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega desmaiado na estrada. Para melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas de Jorginho, que me prontifiquei a fazer rapidamente.

Depois de certa relutância em abandonar o companheiro, concordaram todos (homens e mulheres, estas já restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não soubera enfrentar com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável que se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em torno da sua pessoa.

Do que aconteceu em seguida não guardo recordações muito nítidas.

A bebida que antes da minha morte pouco me afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente. Pelos meus olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava, triângulos absurdos, cones e esferas de marfim, rosas negras, cravos em forma de lírios, lírios transformados em mãos. E a ruiva, que me fora destinada, enlaçando-me o pescoço com o corpo transmudado em longo braço metálico.

Ao clarear o dia saí da semiletargia em que me encontrava. Alguém me perguntava onde eu desejava ficar. Recordo-me que insisti em descer no cemitério, ao que me responderam ser impossível, pois àquela hora ele se encontrava fechado. Repeti diversas vezes a palavra cemitério. (Quem sabe nem chegasse a repeti-la, mas somente movesse os lábios, procurando ligar as palavras às sensações longínquas do meu delírio policrômico.)

Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. Havia ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte penetrara no meu corpo.

Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência.

Tinha ainda que lutar contra o desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus atos e obrigava-me a buscar, ansioso, nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o mistério que cercava o meu falecimento.

Fiz várias tentativas para estabelecer contato com meus companheiros da noite fatal e o resultado foi desencorajador. E eles eram a esperança que me restava para provar quão real fora a minha morte.

No passar dos meses, tornou-se menos intenso o meu sofrimento e menor a minha frustração ante a dificuldade de convencer os amigos que Zacarias que anda pelas ruas da cidade é o mesmo artista pirotécnico de outros tempos, com a diferença que aquele era vivo e este, um defunto.

Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados.

Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou.

Nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus olhos.

Murilo Rubião